Alice Groth - Correio Braziliense
O intestino é considerado o segundo cérebro do corpo humano, já que é coordenado por um sistema nervoso autônomo com as mesmas características do encéfalo. Tem funções tão estratégicas que a sua microbiota, formada por micro-organismos diversos, é relacionada a uma infinidade de questões de saúde - desde a melhora do sistema de defesa a uma maior vulnerabilidade a doenças. Um estudo divulgado na edição desta terça-feira (1/11) da revista Nature Communications mostra que o novo coronavírus pode reduzir o número de espécies bacterianas no órgão de infectados. Com isso, germes resistentes a antibióticos podem invadir a corrente sanguínea, trazendo maior risco de contaminações secundárias graves, alertam os autores.
A investigação, liderada por cientistas da NYU Grossman School of Medicine, acompanhou 96 homens e mulheres hospitalizados em razão da COVID-19 em 2020, nas cidades norte-americanas de Nova York e New Haven. Os resultados mostraram que a microbiota intestinal da maioria dos participantes do estudo era pouco diversa, sendo que 25% deles tinham um único tipo de bactéria. Conjuntamente, observou-se que vários germes conhecidos por serem resistentes a antibióticos aumentaram suas populações no intestino dos pacientes - provável consequência do uso indiscriminado de antibióticos. Em 20% dos infectados, essas bactérias mais poderosas foram detectadas migrando para a corrente sanguínea.
Segundo os pesquisadores, esse é o primeiro estudo a acusar que a própria ação da infecção pelo coronavírus danifica a microbiota intestinal, e não apenas o uso de antibióticos, e que, em função disso, há o risco de ocorrência de infecções perigosas. "Estudos anteriores mostraram que os pacientes com COVID-19 apresentam desequilíbrios no microbioma, mas a consequência não era clara. Também sabíamos que as infecções da corrente sanguínea são uma complicação com risco de vida para essas pessoas. Conectamos os pontos mostrando que o microbioma intestinal é uma fonte dessas infecções na corrente sanguínea", afirma Ken Cadwell, microbiologista e um dos coautores seniores do estudo.
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Na pesquisa, inicialmente os cientistas contaminaram com Sars-CoV-2 dezenas de camundongos. Isso permitiu que avaliassem se o desequilíbrio da flora intestinal e os defeitos no revestimento do intestino seriam consequência direta da infecção viral. Depois, a equipe coletou amostras de fezes e sangue de pacientes com COVID-19 e as analisou por meio de técnicas de sequenciamento e abordagens computacionais que incluem dados clínicos dos hospitalizados. Essa investigação mostrou que humanos com coronavírus têm desequilíbrios semelhantes no microbioma, como observado também nas cobaias, e que esse fenômeno estava ligado a infecções na corrente sanguínea.
"Esse estudo em si evidenciou que não só o uso exagerado, mas também que o próprio coronavírus age na parte da flora intestinal causando um predomínio das bactérias patogênicas e facilitando essa disseminação para todo o sistema. Essa foi a grande novidade", avalia Bernardo Martins, médico gastroenterologista do Hospital Santa Lúcia de Brasília. Na ausência de remédios para combater a COVID-19, os antibióticos, utilizados para tratamento de doenças bacterianas, foram prescritos em ampla escala pelo mundo. A comunidade científica, porém, sempre contestou o protocolo.
Sistema desregulado
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Jovem com nanismo faz sucesso nas redes sociais mostrando sua rotina de mãeDiagnóstico precoce do câncer de próstata eleva chance de cura em mais 90%Autismo: promova a independência do seu filhoCoronavírus: novo teste detecta infecção em diferentes espécies animaisNos experimentos com camundongos, os pesquisadores descobriram que a infecção por Sars-CoV-2 danifica as células do revestimento do intestino. Segundo Jonas Schluter, outro coautor sênior da pesquisa, foram observadas mudanças ainda mais graves nos pacientes avaliados. "Isso pode permitir que as bactérias vazem para o sangue. Sabe-se que essa complicação acomete outros pacientes que, como os de COVID, são imunocomprometidos. Por exemplo, bactérias intestinais vazando para o sangue acontecem em pessoas com câncer hospitalizadas".
A partir dos resultados, os cientistas pretendem estimular melhorias potenciais no atendimento de infectados pelo Sars-CoV-2, considerando o uso de menos medicamentos antibacterianos para evitar lesões desnecessárias no intestino. "Esperamos que estudos como o nosso informem quando e como administrar antibióticos com segurança e nos preparem melhor para futuros surtos e pandemias", afirma Cadwell. "Também estamos muito interessados em entender como vários órgãos se comunicam e por que algumas pessoas são vulneráveis a problemas intestinais enquanto outras parecem estar bem."
*Estagiária sob a supervisão de Carmen Souza