Chamados de pods, vaporizadores ou e-cigarettes, os cigarros eletrônicos são cada vez mais consumidos pelos brasileiros — o Ministério da Saúde estima que, em 2019, havia cerca de 1 milhão de usuários do dispositivo cuja venda é proibida no país. Estudos vêm mostrando os riscos diversos desse hábito à saúde. Agora, uma equipe da Tufts University School of Dental Medicine, nos Estados Unidos, inclui um novo prejuízo à lista: uma maior probabilidade de ocorrência de cáries e de outros problemas odontológicos.
O estudo, publicado no The Journal of the American Dental Association, é o primeiro conhecido a investigar a associação dos cigarros eletrônicos com uma maior vulnerabilidade ao surgimento de cáries. Karina Irusa, professora-assistente de cuidados integrais da instituição americana, e colegas analisaram dados de mais de 13 mil pacientes acima de 16 anos tratados nas clínicas odontológicas de Tufts, entre 2019 e 2022.
A maioria dos voluntários afirmou não usar os pods, mas, entre os adeptos do dispositivo, os cientistas constataram uma diferença significativa nos níveis de risco da doença bucal. Os resultados mostraram que cerca de 79% dos pacientes que usavam vapes foram categorizados como tendo alto risco de cárie, em comparação a quase 60% do grupo de controle — composto por aqueles que não consumiam cigarros em geral.
Uma das razões apontadas pelo estudo para a maior suscetibilidade é o teor açucarado e a consistência viscosa do vapor produzido pelos e-cigarettes, que, quando inalado pela boca, tem alguns de seus componentes aderidos aos dentes. Os cientistas observaram que o aerossol produzido pelo dispositivo não apenas aumenta a proliferação microbiana da cavidade bucal, como também facilita a adesão da Streptococcus mutans, principal bactéria responsável pela cárie.
"O biofilme bacteriano é um conjunto de bactérias que vivem em um determinado equilíbrio. Quando você usa um produto que favorece a reprodução e a maior quantidade de uma determinada bactéria — e, no caso do cigarro eletrônico, a bactéria que é justamente responsável pela cárie —, você aumenta a probabilidade de essa pessoa ter cárie", explica Giuseppe Alexandre Romito, docente titular da disciplina de periodontia e vice-diretor da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (USP).
Vaporizadores são ricos em açúcar
Segundo Romito, os vaporizadores têm como um dos princípios básicos serem mais ricos em açúcar, o que garante o sabor diferenciado. Há ainda outras substâncias que também modificam a microbiologia da boca e aumentam a adesão de bactérias que causam a cárie. "É como se você estivesse colocando uma bala na boca, uma bala com açúcar", compara.
O propilenoglicol, a glicerina vegetal e a nicotina são alguns desses compostos que ameaçam a saúde bucal. Segundo Camille Vanini, especialista em periodontia pela Universidade de Brasília (UnB) e secretária da associação Brasileira de Odontologia do Distrito Federal (ABO-DF), estudos recentes da Universidade de Rochester, em Nova York, evidenciam que os três ingredientes mais comuns nos cigarros eletrônicos estão associados à formação do biofilme bacteriano e à desmineralização do esmalte do dente.
O propilenoglicol, por exemplo, é um álcool que se mistura facilmente com aromatizantes e é apontado como um dos principais agentes de ressecamento da boca, processo que, quando crônico, pode causar cáries e doenças gengivais. A glicerina, por sua vez, é uma substância viscosa quase tão doce quanto a sacarose. Apesar de não ser metabolizada pelas bactérias associadas ao desenvolvimento da cárie, estudos mostram que, quando combinada com aromatizantes, pode aumentar em até quatro vezes a adesão microbiana ao esmalte dentário e impulsionar em duas vezes a formação do biofilme bacteriano. "A importância de se desenvolver pesquisas nessa temática é que foi amplamente divulgado falsamente a ideia de que o cigarro eletrônico não é nocivo ou menos nocivo que o cigarro tradicional", diz Vanini.
Outras ameaças
Karina Irusa alerta que, mesmo que a pesquisa tenha como foco a relação dos pods com o maior risco de cárie dentária, os cigarros convencionais podem ser tão prejudiciais quanto. "É por esse motivo que nosso estudo excluiu pacientes que usavam cigarros convencionais, pois isso poderia distorcer os resultados", afirma. "Alguns estudos demonstraram que o uso de cigarros convencionais também afeta as bactérias causadoras da cárie, fazendo com que elas adiram mais à superfície do dente. Os cigarros eletrônicos têm sabores açucarados adicionais dos quais as bactérias se alimentam".
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Cigarro é porta de entrada para uma série de doenças
Giuseppe Romito lembra que, nos dois tipos de cigarro, as ameaças à saúde bucal não se limitam a uma maior ocorrência de cáries. Outra complicação é a doença periodontal. "É uma doença inflamatória, de origem infecciosa, que causa um processo inflamatório nos tecidos que são responsáveis pela sustentação do dente na boca. Uma vez que isso acontece, esse processo inflamatório vai causando, de maneira muita lenta, a destruição do osso que segura o dente na boca", detalha.
Se o paciente não for diagnosticado e tratado, ele pode chegar a perder todos os dentes. "A velocidade com que a doença ocorre é maior entre os fumantes", alerta o professor da USP. Segundo ele, o princípio é o mesmo quando se usa cigarros eletrônicos. Porém, faltam estudos científicos com dados mais precisos sobre esse impacto. "Mas já existem trabalhos que mostram que os pacientes que usam vapes têm maior progressão de doença periodontal, se comparados aos não fumantes", afirma Romito.
A autora principal do estudo também reconhece a necessidade de mais investigações sobre o efeito dos e-cigarettes na saúde bucal. Ela e a equipe buscam financiamento para uma nova etapa do estudo: investigar melhor o mecanismo que leva ao risco aumentado de cáries. "Acreditamos que entender o 'como' é fundamental no desenvolvimento de protocolos preventivos e de gerenciamento de cárie para indivíduos que usam cigarros eletrônicos", justifica Irusa. Os autores do estudo recomendam que os dentistas perguntem rotineiramente sobre o uso de cigarros eletrônicos e incluam essa informação no histórico médico de seus pacientes. A recomendação também se estende para dentistas pediátricos que atendem adolescentes, já que esse é o grupo que mais faz uso do dispositivo.
Danos além da boca
Paulo Corrêa, pneumologista e coordenador da Comissão de Tabagismo da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia
"Os cigarros eletrônicos são como o cigarro tradicional: uma mistura química complexa de quase 2 mil substâncias de natureza ignorada. Eles vão provocar as mesmas doenças que os cigarros tradicionais. A questão vai ser o tempo para elas se mostrarem. As doses de nicotina no cigarro eletrônico são muito mais altas. Portanto, seu poder de provocar dependência é mais elevado. Além disso, existem riscos específicos, como a inalação de metais. Então, sabemos que tem níquel, latão, cobre, cromo, uma série de substâncias. Por exemplo, os estudos mostraram que o nível de níquel é entre duas a 100 vezes maior nos usuários de cigarros eletrônicos do que nos cigarros convencionais. O níquel já foi relacionado com outros desfechos ruins para o usuário de cigarro eletrônico, como o câncer de pulmão e o câncer de seios paranasais. Então, não, o cigarro eletrônico não é só vapor de água."
* Fernanda Fonseca, estagiária sob a supervisão de Carmen Souza