Ilustração com o ano de 2023 pintado no asfalto

Primeiro dia de 2023: o que planeja para você?

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Virtudes são disposições estáveis e firmes de fazer o bem. Elas envol- vem inteligência e vontade, e podem ser naturais (natas) ou adquiridas (fruto de bons hábitos). “A gratidão, enquanto virtude, é uma memória agradecida, o reconhecimento de um bem ou benefício recebido, um rendimento de graças. É mais que um sentimento, é uma atitude diante da vida, que revela nobreza, humildade, sentimento de pertença, capacidade de olhar além de si mesmo e atribuir a um outro bondade. A gratidão cria vínculo verdadeiro, estabelece uma relação empática e gera felicidade. Numa sociedade centrada no “eu” e na “aparência”, como a nossa, materia- lista, utilitarista, injusta e preconceituosa, é, com certeza, uma das virtudes mais difíceis de se cultivar”, destaca padre André Erick Alves Ferreira, vice-reitor do Seminário Arqui diocesano Coração Eucarístico de Jesus (Sacej) e coordenador do curso de teologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).

Se a gratidão é nobre e enobrece, a ingratidão é bruta e embrutece. Para o padre André Erick, é preciso uma boa dose de maturidade afetiva e convicção, para as pessoas insistirem na prática do bem, mesmo diante de incompreensão, falta de reconhecimento ou ingratidão. “Fazer o bem é um ato de amor, e amor nem sempre é reciprocidade, mas é sempre gratuidade. Fazer o bem é bom e não beneficia apenas  quem o recebe, beneficia também  quem o faz, tornando bom ou me- lhor quem o pratica. Por isso, mesmo que a resposta ao bem que fazemos seja a ingratidão, vale a pena fazê-lo porque edifica”, explica. 
 

Fazer o bem é um ato de amor, e amor nem sempre é reciprocidade, mas é sempre gratuidade

Padre André Erick, vice-reitor do Sacej

 
 
vice-reitor do Sacej

Padre André Erick

Ramon Lisboa/EM/D.A Press
 
 
“Em um mundo individualista e competitivo, é um grande diferencial. São Francisco ensina ‘que há mais alegria em dar, que em receber’. Então, se fizermos o bem gratuitamente, isto é, sem esperar recompensa, já nos sentiremos agraciados. Quem faz o bem esperando algo em troca, não dá, empresta, e às vezes espera receber com juros. Por isso, não sente a alegria à qual se refere o santo de Assis. Creio que quando sentimos gratidão a Deus, à vida, as pessoas, quando reconhecemos o quanto somos agraciados, então conseguimos ser altruístas. Aí não estamos tentando angariar algo, mas partilhar um pouco do que recebemos gratuitamente.”
 
O padre André Erick compartilha algo que leu ou ouviu certa vez, registrou na memória e, desde então, traz com gratidão. “‘Dentro de cada um de nós tem dois lobos, um bom e outro ruim, prevalece aquele que alimentamos.’ Fazer o bem, alimenta o lobo bom e vai nos tornando bons. Ser grato por um novo dia, uma nova chance, por um prêmio, por um gesto de delicadeza recebido e, às vezes, até por algo desafiador que nos acontece, faz-nos pessoas que cultivam a gratidão, com boa energia, capazes de gerar vida ao redor. E é interessante como a gratidão transforma a vida, o olhar e, consequentemente, nosso ser e estar nesse mundo, que é desafiador, complicado, mas também cheio de oportunidades e possibilidades. Quem vive a virtude da gratidão, naturalmente vai se tornando mais generoso, mais forte, mais altruísta, empático, integrado, alegre, mais feliz.”

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Em um mundo tão duro, tão desigual, abalado desde 2020 com a instalação da pandemia da COVID-19, e no Brasil, particularmente, tão dividido politicamente, com enfrentamentos, intolerância, ele ensina como exercer a gratidão. “Verdade, o mundo se apresenta duro, desigual, nos sentimos todos inseguros diante da pandemia e dos seus efeitos, a política tem gerado, em não poucos, animosidade e violência, o tecido social está esgarçado e a economia parece cada vez mais usurária e excludente. Há guerras fratricidas em curso no exterior e, aqui, no Brasil, vemos famílias e comunidades divididas, ideologias variadas fomentando relações tóxicas, preconceito, intolerância e des- confiança”, diz.  
“Vemos mazelas que deveriam há muito estar superadas, tais como a fome e a miséria, rondarem nossas casas, e doenças como sarampo e pólio voltarem a ameaçar nossas crianças. Por mais desafiados que nos sintamos hoje, podemos e devemos exercer a gratidão.” 

Gratidão amplia horizontes

O padre acrescenta que a gratidão nos salvará de nos fecharmos em nós mesmos, no nosso grupo, na nossa visão de mundo, na nossa dor, a ir além. “A gratidão ampliará horizontes e nos levará a manter viva a esperança, fazer o bem e viver uma vida que vale a pena. Nesse sentido, o papa Francisco, com sua encíclica ‘Fratelli tutti’ (2019), que trata da fraternidade e da amizade social, nos dá uma importante contribuição, pois aponta o caminho do diálogo, da empatia, da responsabilidade social como remédio para as sombras que nos encobrem e impedem de colaborar e agir em conjunto”, destaca padre André Erick.
 
De acordo com padre André Erick, a gratidão permite ver os desafios como possibilidades, abre espaço para a esperança. “E, talvez, agora mais do que nunca, precisamos de esperança e de transformar esse substantivo em um verbo – ‘esperançar’ – visando às ações e atitudes concretas. Creio que a gratidão nos ajuda nisso, pois educa o olhar, nos faz reparar no que está acontecendo de bom e de belo ao redor e fomentá-lo, a perceber sinais de esperança e se tornar também um sinal dela.” 
 
Para ele, no auge da pandemia, as pessoas pensaram na vida e no que realmente importa. “Houve gestos de empatia, partilha e solidariedade. Mas bastou retomarmos a rotina estressante e ritmo frenético que esquecemos do que havíamos refletido e redescoberto, nos fechamos em nós mesmos de novo.” 

MEMÓRIAS

Mas como resgatar a gratidão? “Eu diria que recordando todas as coisas boas que nos aconteceram e ajudar outras pessoas a recordar também. Celebrar essas memórias pessoal e comunitariamente, não deixar que se apaguem, pois têm um potencial enorme de bem-estar. De certo modo, é isso que fazemos na eucaristia, celebramos a memória agradecida do evento salvador, a paixão-morte-ressurreição de Jesus, por amor a nós. Ao recordar a ação de Deus na missa, percebemos que ela não se restringe ao passado, que ela continua acontecendo no presente e que Ele continuará nos salvando, transformando, sanando, por seu amor.” 
 
Padre André Erick enfatiza que a gratidão aponta para além de nós mesmos, para a transcendência e para o transcendente, nos ajuda a perceber que não estamos sós, que contamos com uma força que vem do alto e “conspira a nosso favor”. “Desse modo, a gratidão nos ajuda a trilhar um caminho diferente, com mais cor, com brilho, com mais capacidade de sonhar e realizar. Nessa perspectiva, sugiro que cada um olhe para 2022 e pense honestamente nos muitos motivos que tem para ser grato – a vida, a família, os amigos, o amor, a saúde (ainda que precária), o estudo, o trabalho, as pequenas e grandes conquistas, os fracassos e os aprendizados, os talentos recebidos, e colocados a serviço, a resiliência, as oportunidades que conseguiu aproveitar, a democracia celebrada nas eleições, a presença amorosa de Deus no seu cotidiano – e veja 2023 como um novo ano com todas as possibilidades que naturalmente traz”, comenta. 
 
“A gratidão é filha da humildade e caminha junto com a esperança, elas se alimentam. Gratidão é ver além do óbvio, ela nos enche de esperança-certeza para continuar, não obstante os desafios. O ser humano é um ser em relação. Se vivêssemos sozinhos, não saberíamos quem somos. O outro é necessário para que nos percebamos distintos, indivíduos. Desejo a todos um ano novo de paz, de alegria, de muitas realizações; que possamos aprender com as diferenças e reconhecer a importância do outro, dos outros e do grande Outro (Deus) nas nossas vidas, com gratidão.” 
 

professor de filosofia do direito na PUC Minas e UFMG

Marcelo Galuppo

Arquivo pessoal
 
 
Três perguntas para...

Marcelo Galuppo, professor de filosofia do direito na PUC Minas e UFMG e coautor, com Davi Lago, do livro “#Umdiasemreclamar”, da Editora Citadel 
 
1 - O que a filosofia explica sobre gratidão e esperança? 
Há uma tendência no ser humano para a ingratidão, que é um sinal da inadequação do mundo aos nossos desejos. Existe a história de uma menina que ganhou uma maçã de uma senhora e não agradeceu, e a mãe da menina, sentindo vergonha, perguntou para a filha, com a cara fechada: “O que a gente diz quando ganha uma maçã?”. A menina estendeu o braço com a maçã para a senhora e lhe disse: “Descasca!”. Pode parecer cômico, mas é trágico. Isso não quer dizer que não existam pessoas gratas, mas essas pessoas tiveram que cultivar uma virtude, que é a virtude da gratidão. Aristóteles dizia que as virtudes não são nem naturais (porque senão todo mundo seria virtuoso), nem antinaturais (porque senão ninguém seria virtuoso), mas que elas podem ser desenvolvidas pela prática constante. Esse é o caso da gratidão e da esperança. Por causa de uma certa secularização da filosofia ocidental ao longo do tempo, os filósofos contemporâneos tendem a não pensar muito nas chamadas virtudes teologais (que são a fé, a esperança e o amor), mas elas são virtudes como quaisquer outras, e mesmo um ateu pode desenvolvê-las. Immanuel Kant, por exemplo, dizia haver três perguntas fundamentais para o ser humano: o que posso saber, como devo agir e o que me é lícito esperar. Assim como o conhecimento e o dever, a esperança é importante para orientar nossa vida. Por exemplo: quando aplicamos dinheiro em algum investimento, quando escolhemos um candidato em uma eleição, quando decidimos nos casar com alguém ou quando prestamos um concurso, há sempre algum tipo de esperança que orienta nossas escolhas.

2 - Reclamar é ser ingrato?
O primeiro sinal da ingratidão é exatamente a reclamação. Ela surge quando as coisas não são como gostaríamos que fossem. Queremos estar no controle da realidade, mas muitos filósofos, como os estoicos e os céticos, pensam que isso é impossível: nossa vida é determinada por muitos fatores, e apenas uma parte deles depende de nós. Confúcio, o filósofo chinês, achava que, exatamente por isso, a única coisa que nos interessa (porque é única que podemos mudar) é nosso caráter (porque não temos controle total sobre nossa riqueza, saúde etc.). Isso tem a ver com a gratidão: muitas vezes, não podemos mudar nossa sorte, mas podemos mudar como reagimos diante dela. Podemos ser gratos com o que temos mesmo no meio da adversidade.

3 - A gratidão tem de estar presente nas relações humanas? É uma ferramenta evolutiva?
Nós podemos ser ingratos às vezes, mas deveríamos sempre fazer um exame de consciência ao final do dia e avaliar nosso comportamento. Isso é importante porque é um processo para serenar a mente. Quando percebo minha própria ingratidão, começo a fazer as pazes com o mundo e comigo mesmo. Só assim podemos dormir tranquilos. 

4 - Gratidão proporciona felicidade? Mas felicidade não é uma utopia?
A felicidade não é uma utopia, desde que a pensemos sob duas condições. Primeiro, que ela não é sinônimo de alegria. Alegria é um sentimento, uma emoção, uma paixão. A felicidade é um estado da vida humana. Significa que nossa vida é de tal modo que ela é uma vida que consideramos que valha a pena ser vivida. A segunda condição é que devemos procurar a felicidade não nas coisas extraordinárias (como a riqueza ou a fama), mas nas coisas ordinárias. A filósofa Agnes Heller diz que há três coisas que nos tornam felizes. A primeira é um mínimo de segurança e de certezas. Alguém que não tenha condições mínimas de existência, alguém que não saiba se terá alimento amanhã, não pode ser feliz. A segunda é o desenvolvimento dos talentos pessoais. Alguém que sempre quis ser médico ou aprender a tocar um instrumento musical, mas que não dedicou tempo para isso também nunca será feliz. E a terceira é envolver-se em relações pessoais profundas e significativas. E, sem gratidão, uma pessoa nunca terá amigos. Ninguém gosta de ingratos.