Em março de 2020, enquanto o Reino Unido se preparava para entrar em lockdown, dois novos testes foram incluídos no clinicaltrials.gov, o maior registro de ensaios clínicos do mundo, mantido pelo Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos.

Os pesquisadores propuseram que a BCG, uma antiga vacina contra a tuberculose, fosse testada para verificar seu efeito protetor contra a  COVID-19.





Mas, como as vacinas costumam ativar reações imunológicas muito específicas contra suas doenças-alvo, por que esses cientistas acreditavam que a BCG pudesse ter efeito contra este patógeno tão profundamente diferente?

Na verdade, quase desde o seu primeiro uso contra a tuberculose, há pouco mais de 100 anos, sabe-se que a BCG tem “efeitos protetores não específicos”. Em outras palavras, ela pode prevenir outras doenças, além da tuberculose.

A BCG foi desenvolvida na França por dois médicos, Albert Calmette e Camille Guérin – daí vem seu nome: Bacilo Calmette-Guérin.


Entre 1908 e 1921, Calmette e Guérin cultivaram repetidas vezes, sobre fatias de batata, o organismo responsável pela tuberculose em bovinos, até que sua versão mais atenuada não mais causasse a doença nos animais. E a BCG também protegeu aqueles mesmos animais, quando foram inoculados posteriormente com a versão humana do micro-organismo.

Leia também: Comunicação sobre vacinas deve ser permanente, defendem especialistas.

 


Em poucos anos, a BCG estava sendo injetada em crianças, oferecendo altos níveis de proteção contra a tuberculose, com poucos efeitos colaterais.





Em 1931, Calmette sugeriu que a BCG também poderia evitar a morte por outras doenças infecciosas, além da tuberculose. Esta observação foi sustentada, em parte, por dados de estudos realizados na Suécia.


Uma nova análise dos dados suecos concluiu recentemente que, embora houvesse um elemento de “viés vacinal saudável” em alguns daqueles dados (ou seja, pessoas com melhores condições de saúde têm maior probabilidade de serem vacinadas), os resultados realmente sustentavam um efeito protetor não específico da BCG.


Observações e testes posteriores também relataram efeitos protetores não específicos da BCG contra infecções pulmonares não relacionadas à tuberculose.


O motivo da capacidade da BCG de induzir um estado geral de prontidão no sistema imunológico – um fenômeno conhecido como “imunidade treinada” – é a sua identidade como micro-organismo vivo com uma parede celular externa complexa.


Certos componentes dessa parede celular são detectados pelos elementos mais antigos (em termos evolutivos) do sistema imunológico, também chamados de reação inata. Esta interação programa as células imunológicas inatas a reagir com maior eficácia a qualquer micro-organismo que elas encontrarem.





Camille Guérin em seu laboratório no Institut Pasteur, em março de 1958

(foto: Getty Images)

Vacina contra o câncer

 

Os efeitos benéficos da BCG não se restringem às doenças infecciosas. A administração de bactérias vivas ou mortas como tratamento contra o câncer foi descoberta no século 19.

Os efeitos específicos das micobactérias contra o câncer foram observados no início do século 20. A descoberta levou ao estabelecimento da BCG administrada diretamente à bexiga como tratamento contra câncer de bexiga invasivo não muscular – que ocorre quando as células cancerosas encontram-se apenas na superfície interna da bexiga. A vacina é o tratamento padrão para este tipo de câncer até hoje.

Já os testes de imunoterapia com BCG contra outros tipos de câncer forneceram resultados contraditórios. Alguns estudos relataram ausência de efeito contra malignidades em geral, enquanto outros sugeriram efeito contra a leucemia infantil ou até um dramático efeito de longo prazo contra câncer do pulmão.






Sua injeção direta em lesões de melanoma revelou resultados positivos. Já a administração de BCG pelo método de injeção padrão no braço é menos convincente no tratamento de melanoma.


Leia também:  Tuberculose: Brasil é o 2º país do mundo em mortes, diz a OMS.

Para destruir com sucesso as células cancerosas, o sistema imunológico desenvolve muitas armas que também são eficazes contra vírus e bactérias que gostam de viver dentro das nossas células. E o efeito de imunidade treinada fornecido pela BCG ativa essas mesmas armas, direta ou indiretamente. Em outras palavras, a BCG é “imunoestimulante”.

Por isso, pode causar surpresa a descoberta de que alguns dos efeitos protetores não específicos da BCG funcionam contra doenças nas quais o sistema imunológico é superativo ou combate os alvos errados — como por exemplo nas condições autoimunes esclerose múltipla e diabetes tipo 1. Nestas condições autoimunes, a BCG tem um efeito oposto e benéfico, atenuando a imunidade.





Estudos demonstraram que a BCG pode reduzir e evitar danos ao sistema nervoso causados pela imunidade em casos de esclerose múltipla. E pode também combater células imunológicas descontroladas que atacam a produção de insulina no pâncreas de pacientes diabéticos.

Na esclerose múltipla e na diabetes tipo 1, os cientistas acreditam que a capacidade da BCG de reprogramar o metabolismo nas células e aumentar o número de células T especiais que reduzem a imunidade tem papel importante.

E contra a COVID-19?

 

O que aconteceu com a vacinação contra a COVID com a BCG? Também aqui, o panorama é contraditório. Uma meta-análise recente — estudo que combina e analisa dados de diversas pesquisas — não conseguiu encontrar um efeito protetor geral. Mas testes individuais tiveram algum sucesso.





Houve, por exemplo, redução do risco de COVID-19 seis meses após a vacinação. Ou, mais surpreendentemente, observou-se eficácia de 92% em adultos com diabetes tipo 1 duradoura que receberam BCG para a prevenção da COVID.

A tendência de variação da proteção fornecida pela BCG é conhecida há algum tempo, tanto para seu “trabalho diário” como vacina contra a tuberculose, quanto para seus efeitos protetores não específicos. Foram propostas diversas razões para esta variabilidade.

A exposição anterior a outros micro-organismos, como bactérias da mesma família da BCG, ou a vermes parasitas pode fazer com que o sistema imunológico reaja de forma errônea à BCG. E diferenças genéticas entre os pacientes também podem gerar reações imunológicas menos eficientes à vacina.





No futuro, quando entendermos melhor o ambiente que permite que a BCG forneça seus efeitos específicos e não específicos de forma mais consistente, certamente poderemos fazer uso mais eficaz desta vacina — a mais versátil de todas.

* Steven Smith é professor de ciências biomédicas da Universidade Brunel de Londres.


Este artigo foi publicado originalmente no site de notícias acadêmicas
The Conversation e republicado sob licença Creative Commons. Leia aqui a versão original em inglês.

compartilhe