*Atenção: esse texto contém informações e imagens que podem ser consideradas pertubadoras
Em 2022, no Estado indiano de Bihar, uma mulher foi informada que o estuprador da sua filha havia morrido e que o processo contra ele tinha sido arquivado. Ela questionou a afirmação e descobriu a verdade, o que levou à reabertura do caso, até que a justiça acabou sendo feita para a sua filha. Esta é a sua notável história de perseverança.
Em uma suave manhã de 2022, possivelmente em fevereiro, dois homens chegaram a um campo de cremação às margens do rio Ganges, o mais sagrado da Índia.
Eles estavam ali para realizar um ritual fúnebre hindu. Os homens carregavam lenha, mas, estranhamente, não levavam um corpo.
Quando eles chegaram ao campo de cremação, tudo ficou ainda mais bizarro.
Os homens construíram uma pira no solo e um deles deitou-se sobre ela, cobrindo-se com um manto branco, e fechou os olhos. O outro homem empilhou mais lenha sobre a pira, até que apenas a cabeça do primeiro ficasse visível fora da pilha de madeira. Foram tiradas duas fotografias dessa cena. Não está claro quem tirou as fotos ou se mais uma pessoa estava presente.
O homem “morto” aparentemente era Niraj Modi, professor de uma escola governamental no Estado de Bihar, no norte da Índia. Ele tinha 39 anos de idade. O outro homem era seu pai, o magro agricultor Rajaram Modi, com pouco mais de 60 anos.
Rajaram Modi viajou então com um advogado até um tribunal, a cerca de 100 km de distância, e prestou uma declaração jurada e assinada, dizendo que seu filho Niraj havia morrido no dia 27 de fevereiro, na casa deles na aldeia. Ele também forneceu duas fotografias da cremação e recibos da lenha comprada para o ritual como comprovação.
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Tudo ocorreu 60 dias depois que a polícia apresentou acusações de estupro contra Niraj Modi. Ele foi acusado de estuprar uma menina de 12 anos de idade, que era sua aluna, em outubro de 2018.
A menina havia sido atacada quando estava sozinha em uma plantação de cana-de-açúcar e seu estuprador afirmava que havia filmado o ataque e iria publicar o vídeo online.
Modi havia sido preso pouco depois que a mãe da menina apresentou queixa à polícia, mas foi solto sob fiança, depois de passar dois meses na prisão.
O caso mudou rapidamente depois da “morte” de Niraj Modi no ano passado. Dois meses depois da informação prestada ao tribunal pelo seu pai, as autoridades locais emitiram seu atestado de óbito. E, em maio, o tribunal deu o processo por encerrado, já que o “único acusado do caso” estava morto.
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Apenas uma pessoa suspeitou que o professor tivesse forjado sua própria morte e passado a esconder-se para evitar a condenação – a mãe da menina, uma mulher frágil que morava em uma cabana na mesma aldeia da família Modi.
A busca da verdade
“Desde o momento em que fiquei sabendo da morte de Niraj Modi, eu sabia que era mentira. Eu sabia que ele estava vivo”, disse a mãe quando a encontrei recentemente.
Sete em cada 10 mortes na Índia ocorrem nas cerca de 700 mil aldeias do país. Nessas aldeias, muito mais pessoas morrem em casa do que nas grandes cidades.
Uma lei de 54 anos atrás exige o registro obrigatório dos dados de nascimentos e mortes, mas não as causas das mortes.
Quando uma pessoa morre em uma aldeia de Bihar, um familiar do falecido precisa apresentar seu número exclusivo de identidade biométrica e obter as assinaturas de cinco moradores da aldeia, que servem de testemunhas do óbito.
Os papéis precisam então ser encaminhados ao panchayat local ou ao conselho da aldeia. Seus membros, incluindo um oficial de registro local, examinam os documentos e, se tudo estiver em ordem, emitem uma certidão de óbito em até uma semana.
“Nossas aldeias são densas e fortemente unidas. Todo mundo conhece todo mundo. Uma morte nunca passa despercebida ou deixa de ser comentada”, afirma o advogado da vítima, Jai Karan Gupta.
Rajaram Modi havia apresentado as assinaturas e números de identidade biométrica de cinco moradores locais e a declaração dizendo que seu filho estava morto. E ele recebeu o atestado de óbito do filho.
O documento não mencionava a causa da morte. O recibo da loja que vendeu a lenha dizia que a morte foi causada por “doença”.
Em maio de 2022, a mãe ficou sabendo por um advogado que o processo contra Niraj Modi foi encerrado porque ele havia morrido.
“Mas por que ninguém ficou sabendo da morte do professor? Por que não foram feitos rituais depois da morte? Por que ninguém falava sobre a morte?”, ela pergunta.
A mãe conta que saiu de casa em casa, perguntando às pessoas se Niraj Modi havia morrido. Ninguém havia tomado conhecimento da notícia.
Em seguida, ela foi ao tribunal com uma petição para investigar o caso, mas os juízes pediram evidências que comprovassem que o professor estava vivo.
Em meados de maio, a mãe apresentou outra petição para uma autoridade local, afirmando que o conselho da aldeia havia emitido um atestado de óbito com base em documentos falsos, o que deveria ser investigado. Esta petição acelerou o processo.
O agente ordenou uma investigação e informou o conselho da aldeia. Seus membros pediram a Rajaram Modi mais evidências sobre a morte do seu filho: fotos do “falecido após a morte, da cremação, da pira queimando, dos últimos rituais e declarações de cinco testemunhas”.
Os membros do conselho da aldeia visitaram cerca de 250 residências de moradores locais. Ninguém parecia ter ouvido falar da morte de Niraj Modi.
Além disso, nenhum membro da família Modi havia raspado sua cabeça em homenagem ao falecido. Raspar a cabeça é uma tradição fúnebre hindu, normalmente reservada para a morte de um parente próximo.
“Os próprios parentes de Niraj Modi não sabiam da sua morte, nem do seu paradeiro”, afirma o investigador de polícia Rohit Kumar Paswan. “Eles diziam continuamente que, se tivesse ocorrido uma morte, os ritos finais teriam sido realizados em casa.”
Os membros do conselho da aldeia questionaram novamente Rajaram Modi. Ele não havia fornecido novas evidências sobre a morte do seu filho. “Fizemos a ele novas perguntas, mas ele não ofereceu respostas satisfatórias”, afirma o secretário do conselho, Dharmendra Kumar.
As investigações concluíram que Niraj Modi havia forjado sua morte e que pai e filho falsificaram documentos para obter o atestado de óbito.
A polícia descobriu que o professor havia tomado os números de identidade biométrica dos pais de cinco dos seus alunos e falsificado suas assinaturas no papel para obter seu próprio atestado de óbito. Ele disse aos pais que precisava dos seus números de identidade para obter bolsas de estudo para os alunos.
No dia 23 de maio, as autoridades cancelaram o atestado de óbito de Niraj Modi. A polícia prendeu seu pai e o acusou de falsificação.
“Eu nunca havia investigado um caso como este na minha carreira”, afirma Paswan. “O plano parecia perfeito, mas falhou.”
Em julho, a Justiça reabriu o caso, dizendo que havia sido “enganada e induzida ao erro” para que o acusado pudesse “escapar impune”.
A mãe, em sua batalha incansável para encontrar o professor, foi ao tribunal pedir sua prisão.
Niraj Modi entregou-se à Justiça em outubro, nove meses depois de ter sido declarado morto. Ele se defendeu durante o julgamento, negando a acusação de estupro. Modi saiu do tribunal abatido e contido por uma corda.
Em janeiro de 2023, a Justiça considerou Niraj Modi culpado de estuprar a menina e o condenou a 14 anos de prisão, além de conceder uma indenização de 300 mil rúpias (US$ 3.628, cerca de R$ 18,7 mil) para a vítima.
O pai, Rajaram Modi, também está preso, acusado de fraude e desonestidade. A pena máxima prevista é de sete anos de prisão. Pai e filho enfrentam agora as acusações relativas ao atestado de óbito falso.
“Passei mais de três anos viajando até o tribunal para ter certeza que o homem que atacou minha filha fosse punido”, afirma a mãe. “Até que, um dia, seu advogado me disse que ele estava morto. Como um homem poderia desaparecer no ar desta forma?”
“O advogado me disse que custaria muito dinheiro entrar com uma nova ação para provar que a morte foi forjada. Outros me disseram que o acusado sairia da cadeia e se vingaria”, ela conta.
“Eu não me importei com isso. Disse que conseguiria o dinheiro. Não tenho medo. Eu disse ao juiz e às autoridades: ‘descubram a verdade’.”
‘Vida paralisada’
Nós viajamos horas de carro, em estradas esburacadas. Atravessamos esgotos a céu aberto, favelas, plantações amarelas de mostarda e olarias fumegantes até chegarmos à caótica aldeia da vítima, bem no interior de Bihar, um dos Estados mais pobres da Índia.
Uma estreita rua pavimentada esgueirava-se em um labirinto de pequenas casas de tijolos com antenas parabólicas nos telhados. A mãe morava com seus dois filhos em idade escolar e a filha, em um pequeno cômodo de tijolos sem janela, com teto de estanho corrugado e telhas. Sua filha mais velha casou-se e morava em outro lugar.
O quarto escuro e sombrio abrigava poucos objetos: um berço de madeira e corda, um recipiente de aço para guardar grãos, um fogão de argila enterrado no chão e um velho varal com roupas. A família não tinha terra para viver.
A aldeia tinha eletricidade e água encanada, mas não havia empregos, o que levou o pai da menina a migrar para outro Estado mais ao sul, a mais de 1.700 km de distância. Lá, ele trabalhava como carregador e mandava dinheiro para casa.
Em 2019, o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, anunciou que 100% das aldeias indianas declararam-se livres de defecação ao ar livre, após um extenso programa de construção de banheiros conduzido pelo governo. Mas muitas casas – incluindo a da mãe – ainda não tinham banheiro.
Por isso, sua filha havia ido até um campo de cana-de-açúcar nas proximidades para usá-lo como banheiro. Foi quando Niraj Modi caminhou até ela por trás, tampou sua boca e a estuprou, segundo o juiz Kush Kumar no seu veredicto.
O juiz afirma que Modi também disse a ela que ficasse em silêncio enquanto gravava um vídeo do ato, ameaçando tornar o vídeo viral.
Dez dias depois do ataque, a menina, assustada, contou o ocorrido à sua mãe, que foi à polícia. Nos dias que se seguiram, a filha forneceu provas. “Niraj Modi costumava me bater na escola”, disse ela à polícia.
A menina voltou à escola depois da prisão de Modi, mas deixou de ir quando ele saiu sob fiança. Ela já está fora da escola há quatro anos. Seus livros escolares foram vendidos para reciclagem do papel.
Pálida e nervosa, a menina agora passa a maior parte do tempo no quarto escuro. “Sua vida como estudante acabou”, diz sua mãe. “Tenho muito medo de deixá-la sair de casa. Espero que ela consiga se casar.”
Muitas perguntas seguem sem resposta. Como o conselho da aldeia emitiu a certidão sem verificar corretamente os documentos?
“Quando os questionei, mais tarde, eles disseram que cometeram um erro”, conta a mãe.
O professor Prabhat Jha, da Universidade de Toronto, no Canadá, realizou um dos maiores estudos sobre mortalidade prematura do mundo. Ele afirma que o caso de Niraj Modi é “muito incomum e raro”.
Segundo ele, “no nosso trabalho, não encontramos nenhum caso com este”. Jha refere-se ao seu ambicioso Estudo de Um Milhão de Óbitos na Índia. “As transgressões, muito provavelmente, são raras e precisaríamos ter mais cuidado ao estabelecer novas restrições ou barreiras ao atestado de óbito, pois elas podem piorar as coisas”, afirma o professor.
O motivo é que, à medida que mais mulheres do que homens, e mais pobres do que ricos, tiverem suas mortes e registros médicos não contabilizados na Índia, ficará mais difícil transferir ativos e realizar outros esforços, o que “provavelmente contribui para as armadilhas da pobreza”.
De volta à casa na aldeia, parece que a vida se resolveu para a mãe, depois de fases combativas e estoicas, repletas de ansiedade.
“Eu pressionei a aldeia e as autoridades para que descobrissem a verdade”, relembra a mãe. “Estou satisfeita porque o homem que violentou minha menina e deixou uma cicatriz na vida dela está na cadeia.” “Mas a vida da minha filha ficou paralisada. O que irá acontecer com ela?”