À medida que envelhecemos, acontecem mudanças no nosso corpo. Algumas doenças ficam mais frequentes e, consequentemente, passamos a fazer uso de medicamentos para controlá-las. O uso de quatro ou mais medicações diferentes, hábito conhecido como polifarmácia, pode causar vários problemas, mesmo se corretamente indicados.
Foi o caso de Nelzita, de 75 anos. Ela é aposentada e sempre foi considerada muito inteligente. Estudou a vida toda, tem dois cursos superiores e trabalhou em órgão público em uma posição relevante. Era casada, independente, tem três filhos e ficou viúva em 2014.
Desde a fase adulta, Nelzita apresentava, em alguns momentos, quadros depressivos. Quando acontecia, ela tratava, melhorava e a depressão passava. “A manutenção era feita com terapia, mas sempre, depois de determinadas ocorrências, o quadro depressivo voltava. Isso perdurou por muitos anos, inclusive com a morte do meu pai.” Nessas fases, ela tomava uma grande quantidade de medicações com o intuito de se recuperar, ficar tranquila e ajudar a desenvolver a vida, trabalhar, cuidar dos filhos e dos pais dela. “Tudo se ajeitava e ela mesma conseguia se manter de forma independente”, comenta Anne Moreira Pinto, sua filha.
Em 2018, ela, juntamente com os irmãos, decidiu que seria melhor cuidar da mãe mais de perto por perceber que seu comportamento geral havia alterado, tais como a inibição e o gosto alimentar, por exemplo.
Nelzita foi para casa de Anne e, depois de muitos exames, foi diagnosticada uma demência. “A partir daí, comecei a juntar todos os seus medicamentos e entender o que ela tomava. Eu sabia quais eram os medicamentos, mas não acompanhava de perto e ela acabava fazendo o uso de tudo sozinha.”
ALOPATAS
Foi aí que eles ficaram chocados com a quantidade de medicamentos alopatas prescritos por médicos e vários outros remédios que ela comprava em farmácias homeopáticas, tais como florais, ervas, chás, vitaminas. “O neurologista que cuidava da minha mãe se assustou e pediu que fizéssemos uma ‘limpa’, porque a interação dessa quantidade de medicamentos poderia estar afetando a parte comportamental dela”, ressalta.
Segundo a geriatra Simone de Paula Pessoa Lima, da empresa especializada em home care Saúde no Lar, é importante ressaltar que a prescrição de uma medicação deve ser feita por um profissional médico. “É ele quem vai avaliar a necessidade, escolher a substância, a dose, baseado nas características do paciente e não só na doença. Há um cuidado especial quando a prescrição é feita para um idoso.”
A substância prescrita pode sofrer alteração na sua absorção, no transporte pelo sangue, na quantidade da dose, na metabolização (etapa para ação ou eliminação) e eliminação.
Isso acaba deixando o medicamento mais ou menos tempo no organismo, a depender da alteração que acontece. “Assim, os efeitos esperados podem demorar mais ou os efeitos colaterais ficarem mais frequentes e intensos.”
Esses problemas acabam fazendo o paciente tomar nova medicação, e quanto mais medicação, maior a chance de ele cair em uma cascata de prescrição: passar uma nova medicação para tratar um sintoma de um efeito colateral da primeira medicação.
Além das medicações prescritas pelo médico, os pacientes, de acordo com a geriatra, acabam tomando outras que são indicadas por parentes, vizinhos, amigos.
“Mesmo na melhor das intenções, elas aumentam muitas vezes o perigo de polifarmácia. E temos também aqueles remédios que se compram sem receita para febre, diarreia, pressão alta, tosse. Afinal, quem não tem uma caixinha de remédio em casa para eventualidades?”
A polifarmácia também aumenta a chance de erro na hora de o paciente tomar os medicamentos. Às vezes, pode não conseguir tomar todos, porque são muitos, tomar com intervalos de horário maior que o indicado e não fazer o devido efeito, tomar com intervalos menores e ter intoxicação por dose elevada ou até tomar duas medicações com nomes comerciais diferentes, mas que têm a mesma substância.
Além disso, o paciente pode se confundir, ou ter receio de tomar todos os remédios juntos. “Ele acaba, por conta própria, tomando um a cada hora do dia, o que dificulta fazer atividades e prejudica a aderência ao tratamento”, pondera a especialista.
Quando os medicamentos da receita não conseguem ser adequadamente usados, o paciente apresenta um risco quatro vezes maior de complicações da doença em tratamento, principalmente quando são doenças cardiovasculares.
“Existe ainda aquela velha – e real – história de medicamento que não pode ser usado em associação com outro específico. Dependendo da interação, pode ocasionar até uma internação hospitalar ou morte.”
Processo de retirada da medicação
Anne conta que sua mãe, Nelzita, sempre tinha uma justificativa positiva para continuar usando tudo que tinha em casa. “Tudo o que as pessoas falavam que era bom para alguma coisa, ela considerava que era bom para ela, comprava e tomava.”
A retirada de sua medicação teve de ser muito estudada e feita aos poucos, pois existia uma resistência muito grande por parte dela para retirar todos os remédios e produtos.
“O processo de retirada e de diminuir a quantidade de tipos de remédio demorou muito tempo para acontecer e chegar a uma quantidade adequada. Começamos em 2018 e estamos em 2023. Tiramos primeiro aqueles que o médico considerou como mais perigosos. Depois de três meses, tirávamos mais um, fazíamos um ajuste, retirávamos outros escondidos, falando que havia acabado na farmácia. Todo esse trabalho foi realizado até conseguirmos chegar no ideal, que hoje está sendo acompanhado por neurologista e geriatra”, disse.
Nelzita, felizmente, não chegou a passar mal e nem teve crises, mas, com certeza, conforme relata sua filha, existiram alterações em seu organismo e em seus exames decorrentes desse excesso de remédios, pílulas e vitaminas que ela tomava e que não podiam ser tomados.
VIGÍLIA
Anne vigia a mãe até hoje com relação a isso, e, atualmente, ela toma cerca de quatro medicamentos, mas todos eles prescritos conforme sua necessidade de saúde. “Eles são remédios para a pressão, colesterol, tireoide, para o emocional e para demência”, conta.
A aposentada, segundo a filha, fala que gostaria muito de não ter de tomar nenhum remédio, mas toda a família sabe que existe uma dependência em seu organismo. “Tanto é que, hoje, toda a medicação que existe em casa, seja dela ou não, fica trancada. Se nós vacilarmos e deixar aberta, isso pode ser uma oportunidade para que ela, escondida, pegue remédios.”
Como o controle da medicação dela é todo feito por Anne, ela consegue monitorar o que deve ser tomado no dia a dia. “Os acompanhamentos hoje são feitos com neurologista, geriatra, psiquiatra e com cardiologista, e é a geriatra quem organiza essas medicações, coloca as receitas de todos eles em um só papel, organiza e verifica se tem a briga de algum remédio com outro.”
Essa revisão das medicações em uso, segundo Simone de Paula, deve ser feita sempre pelo médico, ponderando a indicação, se ainda é necessário, se há alguma interação medicamentosa, se o efeito está sendo observado. “Muitos remédios são necessários durante um momento específico e, depois, não são mais e precisam ser retirados. A história de “usar pro resto da vida” pode não ser bem assim; afinal, mudamos muito ao longo dela.”
Para ajudar a diminuir esses problemas, é importante ter sempre por perto a lista dos medicamentos usados (nome, dosagem e frequência), não tomar medicação sem indicação e necessidade e não suspender medicação sem antes passar por uma avaliação médica.
ALERTA
» A ingestão de substâncias de forma inadequada pode causar reações como dependência, intoxicação e até a morte
» As discussões em torno o tema ainda reforçam necessidade de fazer descarte adequado
dos remédios
» Segundo a Associação Brasileira das Indústrias Farmacêuticas (Abifarma), cerca de 20 mil pessoas morrem anualmente no país por causa da automedicação
» A Organização Mundial da Saúde (OMS), por sua vez, ressalta a importância de disseminar o uso racional de medicamentos, além de enfatizar a indispensável obrigação de administrar adequadamente os fármacos, considerando as necessidades clínicas e individuais de
cada paciente
» Segundo pesquisa realizada pelo Conselho Federal de Farmácia (CFF), quase etade dos brasileiros se automedicam pelo menos ma vez por mês e 25% o fazem todo dia ou pelo menos
uma vez por semana
» Ainda de acordo com o estudo, a automedicação um hábito comum a 7% dos brasileiros
Fontes: OMS, CRF, Abifarma