Quem não fica o dia todo com o celular por perto que atire a primeira pedra. Hoje, o acessório, mais do que um artigo de luxo ou lazer, faz parte da nossa vida, do nosso trabalho, rotina e até do descanso. O uso constante desse aparelho, porém, pode levar ao desenvolvimento de um quadro de dependência com apresentações variáveis.
De acordo com Felipe Mendes, neurocirurgião, membro da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia, esse circuito de formação da dependência tem a ver, entre outros fatores, com uma substância chamada dopamina.
“Todas as vezes em que surge uma notificação, uma curtida, um comentário ou uma reação positiva que traz uma percepção agradável, ocorre a liberação da dopamina - um neurotransmissor que está relacionado com a sensação de prazer e bem-estar.
Como é um sentimento agradável, é natural que o organismo queira vivenciar cada vez mais essas sensações. Contudo, ocorre um processo de sensibilização, isto é, para ter aquela experiência inicial na mesma intensidade, são necessárias quantidades maiores desse neurotransmissor por meio de estímulos mais intensos ou mais repetitivos.”
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A partir desse momento, o neurocirurgião relata que se começa a estabelecer um circuito de dependência. “Além disso, o cérebro é condicionado a ficar na expectativa, de prontidão, de que algo positivo ou prazeroso venha a acontecer. Nessa fase, há liberação de uma outra substância - o cortisol - relacionada à sensação de ansiedade e estresse. Cria-se então um estado de alerta contínuo, o que leva ao hábito de ficar constantemente checando se há uma nova mensagem ou notificação na tela do celular.”
A suspeita de dependência pode ter relação com alguns sinais e sintomas. Entre eles, estão a necessidade de checar, de minuto em minuto aplicativos de rede social, desbloqueio de tela a todo o momento, mesmo sabendo que não há nenhuma nova notificação; dificuldade de realizar uma outra atividade por um período maior de forma ininterrupta, sem realizar pausas constantes para mexer no celular e, por fim, a dificuldade de se "desconectar" do aparelho, permanecer algumas horas distante dele ou mesmo não conseguir sair de casa sem o celular.
O neurocirurgião conta que tudo isso pode levar a quadros de desatenção mais acentuados, dificuldade de foco e concentração para realizar atividades escolares ou do trabalho, principalmente nas atividades que exigem uma carga cognitiva ou intelectual maior. “Pode haver queda no rendimento e até mesmo prejudicar a qualidade do sono, já que há uma exposição aumentada à luz azul, que pode alterar o ritmo circadiano - o relógio biológico interno do organismo.”
É o que acontece com Daniel de Aguiar Ottoni, de 39 anos. O jornalista se considera uma pessoa que não vive sem telefone celular porque o utiliza com frequência, principalmente para trabalho. “Existem alguns aplicativos de trabalho que estão no celular, e eu preciso estar, mesmo nas minhas horas de folga, atento ao que está acontecendo, uma vez que eu ocupo o cargo de editor. Não posso deixar as coisas soltas, ou acontecendo sem que eu esteja ciente”, explica. “Eu prefiro estar atento a todo momento, do que dois dias depois, após uma folga, pegar o celular e ver que perdi algo. Mas em meus momentos de descanso, é claro que a minha relação com o telefone não é a mesma.”
PREJUÍZOS Daniel também encara que esse uso excessivo pode ser prejudicial. “Tudo em excesso faz mal. Em alguns momentos, é possível, talvez ter um controle melhor, não ficar, por exemplo, durante o lazer, tão perto do celular, ou deixá-lo de lado por algumas horas. Mas é um pouco inevitável. Seria muito difícil para mim, já que o celular está sempre no bolso. Eu sempre acabo conferindo mensagens e se chegou alguma coisa. Quando eu acordo de manhã, por exemplo, a primeira coisa que eu faço é bater a mão na escrivaninha para ver as mensagens que chegaram durante a noite. Como eu durmo cedo, acordo cedo também e já tem algumas mensagens de trabalho e pessoais no meu celular.”
Por ser jornalista e precisar estar o tempo todo se informando, atualizando e acompanhando tudo o que acontece, isso faz com que o aparelho esteja em mãos durante mais tempo. Infelizmente, até esse momento, não se sabe com precisão quais seriam os efeitos a longo prazo do uso exagerado de celulares, já que ainda é algo relativamente recente na história da humanidade. Felipe explica que, dessa forma, é ainda mais difícil saber se esses efeitos seriam definitivos ou não. São necessários estudos prospectivos - que realizam acompanhamento longitudinal ao longo do tempo para melhor elucidação.
Para quem deseja tentar equilibrar o uso do celular, o especialista dá dicas como a criação de algumas regras e rotinas. “Por exemplo, separar um período do dia para responder e-mails, outro período para responder notificações em redes sociais, controlando-se para evitar ficar constantemente checando as redes sociais. Outra dica é desativar as notificações de aplicativos na tela inicial do celular. E, quando for realizar uma atividade que exija um nível de concentração maior, é preferível deixar o celular desligado, em modo silencioso ou até mesmo em outro cômodo. Além disso, tentar evitar fazer uso do aparelho pelo menos uma hora antes do horário habitual de dormir para reduzir a exposição à luz azul e também modificar as funções de brilho de tela para modo noturno já disponíveis em vários celulares.”
DETOX Daniel conta que nunca tentou fazer um detox desse tipo e não sabe se daria certo, porque, no dia a dia, ele realmente precisa acompanhar tudo o que acontece. Apenas em férias é que esse ritmo diminui.
Para quem, como o jornalista, trabalha com o aparelho, o neurocirurgião fala que o ideal é tentar dar algumas pausas. “Alguns minutos a cada hora, por exemplo. E durante o trabalho focar apenas nos aplicativos necessários para a função laboral.”
Para quem não trabalha no celular e, ainda assim, sinta dificuldades de tentar estabelecer a criação dessas rotinas de forma espontânea ou perceba que suas atividades diárias estão sendo prejudicadas pelo uso constante de celular, Felipe pondera que pode ser o momento de procurar a ajuda de um especialista para acompanhamento e auxílio na redução dessa dependência.