Doar sangue sempre foi um hábito de Flávio Mendes, brasiliense de 34 anos. Mas, quando ele se mudou para Dublin, capital da Irlanda, descobriu que não poderia mais ser doador.
Isso porque, no país, os sul-americanos não são elegíveis para doação de sangue. E o motivo é o risco de doença de Chagas.
"Foi bem surpreendente, já que sempre doei, faço exames regulares de sangue e nunca foi detectada [a doença de Chagas]. Me parece muito inflexível e de certa forma discriminatório, já que existem exames para detectar a doença", afirma Flávio. Além de Irlanda, Austrália e Singapura também consideram os sul-americanos não elegíveis para doação de sangue.
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A regra vale tanto para os programas de doação de sangue do sistema público quanto privado desses países. Em Sydney, na Austrália, a brasileira Priscilla Lopes, de 37 anos, também reclama da justificativa do governo australiano.
"Eu me sinto excluída. Existem exames que descartam a doença. Sem contar que é uma doença praticamente erradicada no Brasil", afirma Priscilla.
Embora a transmissão do patógeno por trás da doença de Chagas tenha diminuído bastante nos últimos anos, ela ainda acontece no Brasil.
Além disso, o parasita permanece no corpo por vários anos — portanto, uma pessoa que foi infectada décadas atrás pode ainda carregar o agente infeccioso e transmiti-lo pela doação de sangue.
Os serviços de doação de sangue de outros países informaram à BBC News Brasil que testam os candidatos para excluir apenas os que apresentam risco da doença de Chagas.
É o caso de Alemanha, França, Reino Unido, Espanha, Portugal, África do Sul, Canadá e Estados Unidos. Essa opção de testagem também está presente nas diretrizes de doação de sangue da OMS.
A doença de Chagas
A doença de Chagas recebe esse nome porque foi descoberta pelo médico e pesquisador brasileiro Carlos Chagas em 1909.
Ela é causada pelo protozoário Trypanosoma cruzi (ou T. cruzi), que é transmitido a partir da picada e do contato com as fezes de um inseto conhecido popularmente como barbeiro.
O patógeno pode permanecer no corpo por anos, ou até décadas, e gera problemas no coração ou em outros órgãos, como o intestino.
Em 2006, o Brasil até recebeu um certificado de eliminação da transmissão do T. cruzi. Mas a doença reapareceu em meados de 2018, quando foram detectados casos no Pará devido ao consumo de açaí contaminado por fezes do barbeiro.
O contato com o patógeno se dá pelas mucosas (como quando a pessoa ingere o açaí contaminado, por exemplo), mas também quando as fezes do inseto são depositadas sobre a pele de uma pessoa após uma picada do barbeiro.
A picada provoca coceira, facilitando a entrada do parasita, que está nas fezes, no organismo humano.
O contágio também pode ocorrer por meio da transfusão de sangue de um doador portador do protozário.
Uma última forma de transmissão ocorre durante a gravidez, de mãe para filho, via placenta.
Os sintomas mais comuns da infecção são febre, aparecimento de gânglios e crescimento do baço, do fígado e coração.
Na fase aguda da doença, os sintomas duram de três a oito semanas. Ainda não existe vacina contra a doença de Chagas e sua incidência está diretamente relacionada às condições das moradias como casas de pau-a-pique, sapê e madeira, muito comuns nas regiões mais pobres da América do Sul.
O barbeiro mora em frestas desses tipos de casas e até em folhas de árvores. É por isso que cuidados com a conservação das casas, o uso regular de inseticidas e a instalação de telas nas portas e nas janelas são algumas das medidas preventivas que devem ser adotadas, principalmente em ambientes rurais.
Segundo o Ministério da Saúde, atualmente morrem no Brasil cerca de 4,5 mil pessoas por ano por causa da doença de Chagas, principalmente em Minas Gerais, São Paulo, Goiás e Bahia.
Vantagem mútua
O imunologista Jaime Santana, que estuda há décadas a saliva dos barbeiros na Universidade de Brasília (UnB), afirma que os dados oficiais do governo são subestimados. Segundo ele, há subnotificação de casos da doença, uma vez que nem todos os pacientes procuram ajuda médica.
"É preciso intensificar o processo educativo nas escolas e nos municípios, ensinar as pessoas a identificar o barbeiro e sempre notificar autoridades. Essa é a melhor forma de combater a doença", diz.
Além de campanhas educativas, o imunologista avalia que cabe ao governo brasileiro divulgar ao mundo dados atualizados da doença no Brasil e reforçar a confiabilidade dos testes que são aprovados pela OMS.
"O teste é barato e essa seria uma forma de prever necessidades e preparar o sistema de saúde desses países que hoje excluem esses doadores. Negar a testagem é negar o cuidado com o imigrante."
Segundo o imunologista, a unidade do teste custa pouco mais de US$ 1 (cerca de R$ 5,15).
De acordo com dados de Embaixadas do Brasil, vivem hoje na Irlanda, na Austrália e em Singapura pelo menos 150 mil brasileiros — mas o número de imigrantes não testados por esses países é muito maior, considerando que também fazem parte da lista de exclusão permanente pessoas nascidas nos 13 países da América do Sul e nos 20 países da América Central.
"Se houvesse a testagem, esses países poderiam usufruir do sangue dos brasileiros e sul-americanos e contribuíram para mapear a doença de Chagas no mundo. Todos ganhariam", completa o imunologista.
Restrições no Brasil
O Brasil também tem restrições a doadores estrangeiros e até mesmo a brasileiros que tenham vivido por determinado período na Europa.
O motivo é a doença da Vaca Louca, que ficou conhecida nos anos 1980 e 90, após um surto registrado no Reino Unido.
A legislação brasileira determina que pessoas que tenham vivido por cinco anos ou mais na Europa entre 1980 e os dias atuais estão impedidas de doar sangue no Brasil devido aos riscos de exposição ao príon da doença da vaca louca.
Também não pode doar sangue no Brasil quem tenha recebido transfusão de sangue no Reino Unido após 1980. As regras do Ministério da Saúde estão na portaria nº 158, de 4 de fevereiro de 2016.
A doença da Vaca Louca é letal e está ligada ao consumo de carne contaminada que carrega a proteína chamada príon, que causa danos cerebrais ao matar neurônios e criar "buracos" no cérebro.
Segundo o Hemocentro de Brasília, a doença não é detectável em exames sorológicos e pode permanecer inativa no organismo da pessoa infectada durante muitos anos.
Portanto, a restrição existe por um critério de vigilância epidemiológica.
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