O acesso ao ciclo vacinal completo e o fim do isolamento social pareciam indicar a especialistas melhora na saúde mental, deteriorada pela pandemia de coronavírus. O país chega aos 700 mil mortos, porém, com poucas perspetivas de superar os danos causados por doenças como ansiedade, depressão e transtorno do estresse pós traumático, segundo médicos e estudos.
Trabalhos conduzidos no Brasil e no exterior sobre efeitos da Covid-19 mostraram um aumento expressivo da incidência de doenças mentais em todas as populações. De acordo com o médico e pesquisador Rodolfo Furlan Damiano, doutorando do IPq (Instituto de Psiquiatria) da USP (Universidade de São Paulo), a saúde física impacta o bem-estar mental e socioambiental.
Damiano integrou estudos do instituto sobre os efeitos da infecção por coronavírus na parte neuropsíquica. Em um deles, publicado na revista General Hospital Psychiatry, mais da metade da grupo analisado (51,1%) relatou perda de memória após contrair a doença.
Outros 13,6% desenvolveram TEPT (transtorno de estresse pós-traumático), enquanto 15,5% apresentaram transtorno de ansiedade generalizada e 8% depressão. Situações que, mesmo quando acompanhados por profissionais, podem levar anos de tratamento, além de serem somadas a outros obstáculos pessoais.
"Ao longo do tempo, com as medidas [sanitárias restritivas] sendo retiradas, as pessoas voltam a entrar em contato com os problemas da vida cotidiana delas, só que somados às novas dificuldades que o mundo pandêmico colocou, como falta de emprego, prejuízos financeiros, prejuízos nos casamentos e nas relações", indica Damiano.
A associação entre perda de paladar e olfato com a morbidade de doenças neuropsiquiátrica na pandemia também foi investigada por pesquisadores do IPq. Publicado no European Archives of Psychiatry and Clinical Neuroscience, o estudo, feito com dados de 701 adultos hospitalizados em estado moderado a grave, confirmou a forte relação entre os quadros físicos e mentais dos pacientes com a doença.
A infância é outra área que exigirá atenção. "A sociedade foi mudada de diversas formas. O contato não é mais o mesmo, a proximidade entre as pessoas não é mesma, e os mais jovens são os que mais vão sofrer com isso. Vai ter um impacto no desenvolvimento mental das crianças, que perderam um período muito importante de socialização", pontua Damiano.
Dificuldade para fazer amigos e lidar com conflitos interpessoais são, portanto, alguns dos pontos que terão de ser abordados pela sociedade com frequência nos próximos anos, segundo o pesquisador. A falta de um sistema de saúde mental mais eficaz e acessível pela rede pública, por sua vez, agrava a situação do quadro brasileiro.
"Sabemos que os países que lidaram melhor com a pandemia foram consequentemente os que também tiveram menores índices de transtornos mentais ao longo do tempo. Como o Brasil não lidou muito bem com o período pandêmico, podemos esperar essa resposta um pouquinho mais retardada da melhora", afirma.
Para o psiquiatra Antônio Geraldo, presidente da ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria), o país possui um sistema privado de saúde mental entre os melhores do mundo, mas isso não chega a uma parte expressiva da população que depende da rede pública.
"Desinteresse, falta de prazer, de alegria, transtornos de ansiedade, de estresse pós-traumático, luto, é tudo muito presente e não temos nenhum trabalho específico nessa população que passou por esse estresse e convive com tudo isso", pontua.
Geraldo afirma que a Covid não deve desaparecer e que, nos hospitais, o medo ainda é presente entre pacientes e profissionais de saúde. Estudos publicados na Revista Brasileira de Psiquiatria, da ABP, em 2020, apontavam que a negligência com a saúde mental durante a pandemia poderia trazer problemas econômicos e sociais, afetando diretamente o sistema público de saúde.
No primeiro ano da pandemia, os pesquisadores monitoraram equipes que estavam na linha de frente nos hospitais e alertaram para a necessidade de prevenir o surgimento de transtornos mentais no ambiente de trabalho, especialmente os ligados à saúde.
"É preciso cuidar do cuidador. Ver um plano de carreira para esse profissional, médico, enfermeira, porque continuam trabalhando em mais de um emprego, às vezes três ou quatro, expostos nas UTIs [unidades de terapia intensiva] e em situação de insegurança", diz o psiquiatra.
Outro estudos sobre os efeitos da doença na saúde mental realizados pela associação, também publicados na BJP, apontam que, no Brasil, o sofrimento psíquico foi alto ou muito alto em 13,4% dos profissionais de saúde e em 31,4% da população geral, sendo que no primeiro grupo 36% relataram histórico anterior à pandemia, contra 44,7% do público mais abrangente.
Para a empresária Giselle Cristina da Silva, 35, em 2023 o luto ainda é forte. Ela perdeu o marido em novembro de 2020 em decorrência de complicações da Covid-19.
"Foi um momento que parece que foi congelado. Não sei dizer como consegui chegar até aqui, foi uma sobrevivência e ainda não lido bem com isso. O Ricardo foi arrancado de nós de forma abrupta, era uma pessoa saudável", diz. "Fui obrigada a suportar o insuportável e assim vem sendo até hoje."
Silva, que tem dois filhos frutos do relacionamento, afirma que não buscou tratamento psicológico, apesar da insistência dos familiares. "Sempre tinha a impressão de que quando tentava fazer uma terapia, a pessoa estava tentando tirar o Ricardo do meu coração", relata.
Ela buscou apoio em grupos nas redes sociais com pessoas que também perderam entes queridos e desabafa escrevendo em um perfil no Instagram.
"A questão da Covid afetou drasticamente a minha família. Quando as pessoas estavam voltando às suas rotinas, eu senti uma grande revolta, porque na minha cabeça ninguém tinha tido o impacto que teve na minha casa. A Covid veio, passou por muitas pessoas, mas ela fez um estrago grande em algumas", diz.
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