A partir de abril de 2022, uma hepatite misteriosa começou a atormentar pais e profissionais de saúde em 35 países — são mais de mil casos desde então, sendo alguns deles no Brasil. No início, surgiram hipóteses de que a doença sem causa aparente poderia estar ligada à COVID-19 — à época, as crianças eram a faixa com menor índice de cobertura contra o Sars-CoV-2. No entanto, três pesquisas divulgadas ontem na revista Nature mostram que a hepatite pediátrica pode estar ligada à infecção por um vírus muito comum na infância, o adeno-associado 2 (AAV2).
Esse micro-organismo é conhecido por se replicar no fígado, mas não por causar hepatite. Além disso, ele não consegue se multiplicar sem um auxiliar. "O adeno-associado é um parvovírus que depende de vírus helper para que ocorra infecção produtiva. São descritos 12 tipos, sendo que os tipos 2, 3, 5 e 9 infectam seres humanos", explica Natália Trevizoli, hepatologista do Hospital Brasília.
Dessa forma, sozinho, o AAV2 não é capaz de causar a hepatite grave. Apesar de os artigos o ligarem aos casos da doença misteriosa em crianças, o papel exato do vírus ainda precisa ser esclarecido. O que parece estar descartada é a ligação com o novo coronavírus.
Autor de uma das pesquisas, Frank Tacke conta que a onda de hepatite na primavera de 2022 coincidiu com o relaxamento das medidas da covid-19 em todo o mundo. Dessa forma, acredita, o aumento de casos de infecção pelo AAV2 pode ter relação com o fato de os pequenos terem retornado à vida cotidiana. "O momento do surto pode ser explicado pelo fato de que as crianças foram repentinamente expostas a uma enxurrada de vírus após os bloqueios ou tiveram sistemas imunológicos mal treinados, que levaram a um aumento da suscetibilidade a vírus inofensivos", afirma. Em algumas situações, a hepatite foi tão grave que crianças precisaram de transplante de
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fígado.
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Estudos anteriores encontraram uma associação da complicação no fígado com o adenovírus humanos, patógenos comuns que afetam os humanos. Mas, segundo Trevizoli, esse vírus não costuma gerar complicações críticas. "Ele pode causar sintomas respiratórios, vômitos e diarreia. Sua transmissão ocorre geralmente por contato pessoal, gotículas de saliva e superfícies. É comum que esse tipo de infecção tenha uma duração limitada e não evolua para quadros mais graves", diferencia a hepatologista.
Genética
As pesquisas publicadas na Nature são independentes. Dois times de cientistas trabalharam no Reino Unido. A primeira equipe, guiada por Emma Thomson, detectou o AAV2 em 26 dos 32 casos de hepatite, uma prevalência de 81%. No grupo de controle, o vírus foi localizado em apenas cinco dos 74 indivíduos (6%). A segunda equipe detectou AAV2 em 27 dos 28 casos de hepatite (96%) .
A equipe de Thomson também encontrou uma associação entre a genética do hospedeiro e os casos de hepatite. Cerca de 93% das crianças afetadas carregavam um gene específico para o antígeno leucocitário humano, molécula que ajuda o sistema imunológico a reconhecer as células infectadas. No grupo controle, a taxa foi de 16%. Segundo os autores, a diferença sugere que algumas crianças podem ser geneticamente mais suscetíveis a certas formas de hepatite.
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Já o grupo britânico liderado por Judith Breuer detectou baixos níveis de adenovírus humano e betaherpesvírus humano 6B (HHV-6B) nos dois grupos de crianças (com e sem hepatite), o que sugere que esses vírus permitem a replicação do adeno-associado 2 e, potencialmente, contribuir para a gravidade dos danos ao fígado. Além disso, a equipe comparou o tecido hepático de casos de hepatite e de fígados saudáveis e chegou a fortes evidências de um processo mediado pelo sistema imunológico em pacientes com a doença hepática.
O terceiro estudo, orientado por Charles Chiu, analisou amostras de 14 crianças dos Estados Unidos com hepatite severa. O AAV2 foi detectado no sangue de 13 (92%). No grupo de controle, sem a doença, foram quatro entre 113. As 14 crianças com problemas no fígado também testaram positivo para o adenovírus humano. Nos 13 com AAV2, foram detectadas coinfecções com vírus auxiliares, como o vírus Epstein-Barr, que podem promover a replicação do AAV2. Os autores acreditam que a gravidade da doença pode estar relacionada a coinfecções envolvendo AAV2 e vírus auxiliares.