A esteatohepatite não alcoólica (NASH) é um estágio avançado do acúmulo de gordura no fígado, a esteatose, causando inflamações e lesões no órgão. Atualmente, não há medicação específica para essa complicação, mas um grupo internacional de cientistas liderado pela Universidade de Medicina de Michigan, nos Estados Unidos, conseguiu criar um composto de aminoácidos que trata com sucesso a doença no fígado de primatas. Conforme o artigo, publicado na revista Cell Metabolism, o resultado aproxima os estudiosos da criação do primeiro tratamento para humanos.
A equipe criou o DT-109, uma biomolécula à base de glicina, um tipo de aminoácido. Administrado em camundongos e primatas diagnosticados com NASH, o composto reverteu o acúmulo de gordura e evitou cicatrizes no fígado. "A NASH está aumentando a uma taxa impressionante, e o tratamento bem-sucedido de primatas não humanos com nosso candidato a medicamento, o DT-109, nos aproxima mais do que nunca do tratamento de milhões de pessoas que sofrem dessa condição", enfatizam, em nota, Eugene Chen e Frederick Huetwell, dois autores do estudo.
A dupla também lembra que, durante anos, os cientistas vêm tentando desenvolver um medicamento que trate a complicação hepática. "Mas muitas tentativas falharam em mostrar uma melhora ou levantaram questões de segurança em ensaios clínicos (com humanos)", completam. Apesar da fase inicial da doença ser tratada com exercícios e tratamento nutricional, com o seu avanço, o dano ao fígado é mais permanente em humanos, indica o artigo.
Compostos elaborados anteriormente trataram a patologia em camundongos. Mas, segundo Chen, os modelos da doença nos roedores são limitados. Nesses animais, a NASH não apresenta todas as características comuns em humanos, restringindo a aferição da eficácia dos tratamentos. O DT-109, por outro lado, apresenta resultados também em primatas, nos quais a esteatohepatite não alcoólica se assemelha mais à forma que afeta pessoas, tornando esse composto um dos primeiros a conseguir o feito.
Para o hepatologista e gastroenterologista Quelson Coelho, o estudo pode trazer luz aos diagnosticados com a doença. "A pesquisa em novos tratamentos para a esteatohepatite é crucial para desenvolver terapias mais eficazes e específicas que possam melhorar os resultados clínicos e a qualidade de vida dos pacientes", afirma.
Peso corporal
Nos experimentos, para o início da avaliação do composto, ratos foram alimentados com dieta especial rica em gordura, frutose e colesterol (dieta NASH) por 12 semanas. Em seguida, foram confirmadas a esteatohepatite não alcoólica e a fibrose hepática precoce, conforme evidenciado por um aumento significativo na proporção de peso entre o fígado e o corpo dos animais.Depois, os camundongos foram divididos em três grupos. Dois seguiram a dieta NASH, sendo que um recebeu oralmente o DT-109 em doses crescentes - de 15, 45, 150 e 450 mg/kg/dia por 12 semanas - e outro, água. Cobaias alimentadas com uma dieta padrão e tratadas com água serviram como controle. Na 24ª semana, o peso corporal foi significativamente maior em todos os grupos alimentados com a dieta NASH, independentemente do uso de DT-109.
No entanto, o tratamento com o composto atenuou a hepatomegalia induzida pela dieta, resultando em uma diminuição no peso do fígado proporcional à dose de composto recebida e na proporção de peso do fígado para o corpo da cobaia. O efeito mais significativo obtido foi com doses de 450 mg/kg/dia.
Para conferir a eficiência do composto em primatas, foram analisados mil macacos. Desses, 20 foram incluídos no estudo por conta da predisposição para desenvolver NASH. Assim como os camundongos, eles foram alimentados com a dieta especial. Em 10 meses, apresentaram índices alterados de peso corporal, colesterol e glicose, além do diagnóstico de esteatohepatite não alcoólica. Depois, os animais foram divididos aleatoriamente para receber DT-109 ou água por cinco meses.
A avaliação do dano hepático mostrou uma redução significativa do problema em macacos tratados com o composto. A morfologia macroscópica do fígado também revelou uma coloração amarelada acentuada, que foi atenuada pelo tratamento com DT-109. Macacos submetidos ao tratamento experimental apresentaram ainda menos fibrose e inflamação. Amostras de RNA coletadas antes e depois da dieta foram utilizadas para comparar a doença nos animais e em humanos, o que revelou diversas semelhanças.
Antioxidantes
Conforme o artigo, tanto em primatas quanto em camundongos, constatou-se que o DT-109 reverte o acúmulo de gordura. "Ele se diferencia dos outros medicamentos, como a vitamina E e a pioglitazona, devido aos mecanismos de ação e aos alvos específicos. O composto atua estimulando a eliminação da gordura e a formação de antioxidantes, o que ajuda a reverter o acúmulo de gordura no fígado e a prevenir a progressão da inflamação e da fibrose. Além disso, inibe a produção de ácido litocólico, uma substância biliar tóxica relacionada à doença", explica Coelho.
A equipe planeja, agora, os testes com humanos. "Com esse avanço significativo em modelos pré-clínicos, podemos, agora, considerar a avaliação do DT-109 como um potencial candidato a medicamento para o tratamento de NASH em futuros ensaios clínicos", indica, em nota, Jifeng Zhang coautor e professor-associado de pesquisa de medicina cardiovascular na Michigan Medicine.