Pensar na relação das pessoas com o universo eletrônico segue a máxima – tudo em excesso faz mal. O uso abusivo de tecnologia é uma realidade que vem de muitos anos e, quando se pensa em crianças e adolescentes, o acesso é ainda mais recorrente, seja por influência de amigos ou da mídia. É o que pontua a psicanalista e psicopedagoga Cristina Silveira.
“Propagandas de jogos estão entrando no Instagram e no Tik Tok sem reservas. O uso do celular extrapola as redes sociais, caminhando para os jogos online e outros tipos de jogos disponíveis amplamente na internet. Daí para o vício em jogos é um pulo. São sedutores e planejados para prender a pessoa por mais tempo. São tão potentes que existem casos de crianças e adolescentes que usam os cartões dos pais para comprar “moedas do jogo”, somando altas quantias”, alerta.
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Cristina lembra que todos estão suscetíveis ao vício em jogos, inclusive os adultos, mas pessoas que têm dificuldade para socializar são mais propensas a desenvolver o desequilíbrio, já que os jogos online permitem a interação com outras pessoas sem o esforço social, normalmente exigido nas relações cotidianas. “Jogam online com qualquer um, conversam, sem ter que trabalhar e refinar as relações sociais. Outro grupo em especial são os portadores de TDAH que, durante os jogos e em frente a telas, ficam extremamente atentos e concentrados. Os jogos acionam uma química cerebral que proporciona um estado prazeroso nesses indivíduos”, destaca.
Enquanto problemas de saúde mental, o transtorno do jogo pela internet e a dependência de videogames, associados aos transtornos não relacionados a substâncias, demandam acompanhamento terapêutico e psiquiátrico, orienta Cristina. “Implicam essencialmente como características o abuso, a dependência, a tolerância e a abstinência. Obviamente, cada um com suas especificidades”, diz.
Se caminhar para uma patologia propriamente dita, o vício causa dependência extrema. “Os jovens podem ficar agressivos e com humor alterado. Em alguns casos a condição afeta a alimentação, cuidados de higiene pessoal e relacionamentos sociais.
A retirada pode causar período de abstinência, como qualquer vício em drogas”, aponta.
Esse é um tipo de problema inerente à internet - começa a surgir na sociedade a partir do momento em que a rede mundial de computadores foi disseminada. Um perigo é a falta de regras que poderiam regular o uso. “O acesso é aberto. Pais e responsáveis devem assumir a responsabilidade e restringir o acesso e utilização prolongada”, recomenda Cristina.
Nesse ponto, não é demais reforçar que os pais são os responsáveis pelo cuidado com os filhos. Se presenteiam a criança com um celular, devem ter consciência do que estão entregando para ela, argumenta Cristina. E, principalmente, consciência de que terão que ficar vigilantes e firmes, caso percebam sinais de abuso, complementa. “Vale instalar bloqueadores de tempo, ficar com os celulares no quarto à noite para que o filho não use o aparelho durante a madrugada, verificar que tipo de jogo estão acessando e com quem estão se relacionando. Tudo isso faz parte do pacote de cuidados que vem junto com o presente”, ensina.
Jogos "pacíficos"
A administradora de empresas Luciana Guimarães de Morais, de 51 anos, é mãe de Manuella, de 15. A menina começou a se interessar pelo celular e o universo digital aos 10. Depois que chega da aula, após o almoço, a não ser no intervalo separado para estudar, Manuella fica praticamente o dia inteiro conectada, até a hora de ir dormir, e por mais tempo ainda aos finais de semana. Usa o aparelho não apenas para os jogos, mas também para acessar séries e filmes, além das redes sociais. A jovem gosta de um jogo que envolve outros jogadores – no caso, suas amigas – e outros joga sozinha.
Manuella tem predileção por jogos mais pacíficos, apenas um com maior teor de violência. A mãe sabe bem o que a filha acessa - a relação entre as duas é de transparência. A própria menina conta tudo. É uma experiência saudável. "Ela nunca mente para mim. E sabe bem o limite de tempo que tem para acessar o celular. Para jogar, às vezes, quando está muito alto ou muita gritaria, peço para parar”, diz Luciana.
A relação da estudante com os games é, dessa maneira, tranquila. Para ela, até mesmo uma forma de estimular o cérebro. “Suas prioridades são outras”, conta a mãe. Ainda assim, Luciana reforça a importância dos pais e educadores em estabelecer limites. “Manuella não tem interesse por nada além do que é indicado para sua idade", diz a administradora, lembrando que o celular faz parte da vida de Manuella, nesse caso positivamente.
Para Luciana, a tecnologia tem coisas boas, mas muitas ruins também. E vai além do que apenas acessar conteúdos de entretenimento. O acesso irrestrito ao celular pode gerar problemas, e isso ela percebe inclusive em relação aos seus alunos - dá aulas de inglês em uma escola pública em Belo Horizonte. "É tudo muito rápido. Tudo muito à mão, e muitas vezes, os pais não percebem o risco. As crianças e adolescentes estão expostos”, pondera.
Termômetro
A Pesquisa Game Brasil (PGB) é um importante termômetro sobre o universo dos games no Brasil. Realizada desde 2013, é desenvolvida pelo Sioux Group e Go Gamers, em parceria com Blend New Research e ESPM. Trata-se de um levantamento anual sobre o consumo de jogos eletrônicos no país e o perfil dos jogadores, e em 2023 chega à 10ª edição.
O levantamento mapeia quem são os jogadores de jogos digitais, analisando os diversos perfis e suas particularidades. Levanta em qual classe social estão os gamers, bem como sua faixa etária, raça e cor, nível de escolaridade, sexo e relação familiar, e quais os principais comportamentos de consumo.
Alguns dados importantes da pesquisa em 2023:
>> 70,1% dos brasileiros têm o costume de jogar jogos eletrônicos
>> 82,1% dos jogadores brasileiros consideram os jogos eletrônicos entre suas principais formas de diversão e, para 75,3%, eles são a principal forma de entretenimento
>> 46,2% dos jogadores brasileiros são mulheres e 53,8% homens
>> 16,2% dos jogadores brasileiros têm entre 25 e 29 anos, 16,1 % de 30 a 34, e 15,5% de 35 a 39
>> 42,2% dos gamers se identificam como brancos, 41,4% pardos e 12,7% pretos
>> 40,6% dos jogadores brasileiros moram com os filhos (são pai ou mãe)
>> 24,6% dos jogadores brasileiros estão na classe B2, 23,2% na classe C1 e 17,8% na classe C2
>> 34,6% têm ensino superior completo e 31,7% ensino médio completo
>> 78,7% dos jogadores de jogos digitais conhecem o metaverso
>> 70,5% não possuem equipamento de realidade virtual
>> 29,6% dos gamers brasileiros concordam totalmente que o setor de games no país oferece boas oportunidades para trabalho e carreira
>> 46,6% das pessoas ouvidas na pesquisa se consideram gamers e 53,4% não
>> 95,5% dos entrevistados jogam em casa
>> 38,8% jogam todos os dias, 25,3% entre três e seis dias da semana, e 17,3% pelo menos uma vez na semana
>> 83,7% dos entrevistados assistem a conteúdos sobre jogos digitais pelo YouTube
>> 82,9% dos ouvidos na pesquisa já ouviram falar em eSports e 63,8% acompanham ou assistem eSports
>> 80% das crianças filhas de pais que jogam e também que não jogam têm o hábito de jogar games; 70,3% são meninos e 50,9% meninas.
Fonte: Pesquisa Game Brasil (PGB)