O ato de cozinhar nos torna humanos? “Culturalmente falando, sim, nos torna humanos, pois representa memórias afetivas do passado e da história. Por meio desse ato, compartilhamos momentos de nossas vidas, reunidos ao redor de uma mesa farta, que nos acolhe e nos aproxima. Cozinhar é modificar as estruturas físicas dos alimentos, transformar o que era um ingrediente em um produto final, compartilhar conhecimentos, técnicas e receitas”, define Larissa Laura Gonçalves Fernandes de Souza, coordenadora e professora do curso de gastronomia do Centro Universitário Estácio Belo Horizonte, gastróloga e mestre em nutrição humana e saúde.
A especialista destaca que “aprender a cozinhar pode modificar a percepção que as pessoas têm dos alimentos e seus produtos finais”, comenta. “Após ensinar a cozinhar, independentemente da idade, a aproximação com os ingredientes e sua função é uma forma de promover a saúde, melhorar os hábitos alimentares, reduzir o consumo de refeições fora do lar e ter uma vida mais saudável. E, sim, as escolas deveriam ensinar a cozinhar. Além disso, promover uma introdução à alimentação saudável e balanceada, para que o indivíduo possa fazer escolhas assertivas ao consumir um alimento”, ensina a professora.
Se em outras gerações a habilidade em dominar a cozinha era parte da formação, ainda que só da mulher (mas isso é outra história), com o passar dos anos a sociedade adotou o já desgastado ditado “descasca cada vez menos e desembala muito mais”. A comida de verdade perde espaço para a industrializada, pratos prontos congelados, os ultraprocessados, a praticidade do fast food.
“Com a revolução industrial, muitas pessoas saíram de suas cidades de origem, foram para os grandes centros, alteraram radicalmente a qualidade de vida. Os hábitos alimentares foram se transformando, as quitandas típicas do café da manhã em Minas Gerais, acompanhadas de queijo minas frescal e o café coado na hora, que eram compartilhados com a família antes de iniciarem os afazeres do dia, foram substituídos por uma rotina incansável nas metrópoles, dando lugar a pães industrializados, produtos de fácil acesso, uma forma de sintetizar a alimentação”, conta.
Segundo a especialista, com a chegada da pandemia, as pessoas iniciaram o resgate dos hábitos alimentares. “Estar presente, preparar sua própria alimentação,’mindful eating’ (comer com atenção), compartilhar momentos, sentar à mesa, estar presente em um momento tão importante. Deu-se início ao resgate da alimentação no lar, dos cadernos de receitas, o que pode ser a luz no fim do túnel para um Brasil diante da catástrofe da obesidade.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) aponta a doença como um dos mais graves problemas de saúde que a sociedade tem de enfrentar. Em 2025, a estimativa é de que 2,3 bilhões de adultos ao redor do mundo estejam acima do peso, sendo 700 milhões de indivíduos com obesidade, isto é, com um índice de massa corporal (IMC) acima de 30. No Brasil, essa doença crônica aumentou 72% nos últimos 13 anos, saindo de 11,8% em 2006 para 20,3% em 2019.
COZINHAR É CELEBRAR
Além de ser benéfico para a saúde, como atesta a mestre em nutrição humana e saúde, Larissa enfatiza que o ato de cozinhar pode resgatar memórias afetivas, da infância, de trocas e de momentos importantes da vida, como cozinhar para os amigos e familiares. “A cozinha remete ao carinho, autocuidado, afeto, cuidado com a saúde, criatividade. Que tal olhar o que tem na geladeira e fazer um menu?. Você cozinha para celebrar e se nutrir, e oferecer o que tem de melhor em um alimento para outras pessoas.” Mas mesmo diante de tantos benefícios e ganhos, há quem não saiba ou goste de cozinhar. Mas nunca é tarde para aprender. A gastróloga Larissa indica alguns caminhos:
“Minha dica é começar cozinhando o que gosta. É normal não gostarmos de alguns alimentos ou ingredientes, mas se adora cogumelos, manteiga e grãos é uma combinação perfeita para um risoto, que é de fácil preparo. Ou se seu paladar é para salada, podemos iniciar sua jornada gastronômica com saladas diversas, acrescentando ingredientes variados, em diferentes formas de apresentação. O importante é identificar o que mais gosta. Não cozinhe um prato que não se sinta tão confortável. Faça preparações que te acolham, que sinta prazer em consumir.”
Lembranças da vida na roça
Larissa revela que sua relação com a cozinha começou quando criança, com sua mãe fazendo pratos deliciosos, porém quem despertou o seu lado cozinheira foi a avó. “Contava os dias para chegarem as férias e eu ir para a roça. Era uma festa total, tinha a colheita do milho, amendoim, mandioca. Ah, a mandioca, colhida, ralada, lavada, virava polvilho (sim, ela fazia o próprio polvilho), e depois o polvilho era transformando no famoso e amado pão de queijo. E o queijo? Feito lá mesmo, curado, ralado.”
Ela se lembra que o ralador era uma lata de tinta que foi cortada e virou um ralador gigante. “Mas tinha que ser grande, eram muitas pessoas reunidas ao redor da mesa. Café coado na hora, pão de queijo, biscoitinho assado no forno a lenha, são memórias afetivas que me trouxeram até aqui. Não existia uma receita exata, pois tudo dependia do tamanho dos ovos que também eram colhidos no galinheiro. Era preciso ter técnica, e o mais importante: amor.”
Todos esses momentos ficaram registrados na memória de Larissa. “Quando fiz 16 anos, entrei em um curso técnico no Sebrae e comecei a fazer bolos. E foi uma febre, as pessoas encomendavam, achavam os bolos deliciosos, resgatei minhas memórias e decidi que era isso que queria para a minha vida: cozinhar, compartilhar, dividir tudo que eu já havia aprendido e aprender ainda mais!”.
Receitas no aplicativo
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