Existem certas ideias que, apesar de promissoras, ficam empacadas e demoram para virar realidade. De certa maneira, as vacinas de mRNA se encaixam nesse conceito: são estudadas há décadas, mas só fizeram uma "estreia oficial" durante a pandemia de covid-19, quando as farmacêuticas Pfizer/BioNTech e Moderna lançaram os primeiros imunizantes baseados nessa tecnologia.





Como você vai entender ao longo deste artigo, essa plataforma que ajudou a conter as ondas de casos, hospitalizações e mortes relacionadas ao coronavírus foi inicialmente pensada como um tratamento contra o câncer há várias décadas.

E agora, graças à alta efetividade das vacinas recentes, o mRNA vive uma "era de ouro" e é testado como possível opção terapêutica contra as mais variadas doenças — dos tumores à gripe; do colesterol alto ao lúpus.

Mas como essa tecnologia chegou até aqui? E quais são os próximos passos para que ela seja usada em diversas áreas da medicina? Segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, as possibilidades nesse campo da ciência são as mais variadas — e dependem apenas do investimento financeiro e da criatividade humana.





Mas, para chegarmos a esses detalhes, é preciso antes entender um dos processos mais fundamentais da nossa própria biologia.

Mini-impressoras dentro de nós

Com exceção de óvulos e espermatozoides, todas as células do nosso corpo carregam dentro do núcleo o genoma completo, o DNA.

Nesse conjunto de cromossomos, estão "escritas" muitas das informações que definem os processos orgânicos, as características físicas e a propensão a determinadas doenças de cada um de nós.

Mas o DNA sozinho não faz nada: quando ele precisa enviar algum comando à célula, essa fita em dupla hélice gera uma cópia simples de determinado trecho do código genético.

Esse "xerox" genético vem numa fita simples e é o que conhecemos como RNA mensageiro, ou mRNA.





Esse material então sai do núcleo e viaja até os ribossomos, no citoplasma da célula. Essa estrutura lê a "receita" genética do mRNA e fabrica uma proteína específica relacionada àquele comando escrito no DNA.

Desde que esse mecanismo foi conhecido, a partir dos anos 1960, os cientistas começaram a se perguntar: será que é possível aproveitar essas "mini-impressoras" que carregamos dentro das células para produzir proteínas específicas?

O objetivo era que essas proteínas tivessem algum fim terapêutico, e pudessem servir para gerar uma resposta do sistema imunológico — o que permitiria combater o crescimento de um tumor ou a invasão de um vírus mortal, por exemplo.


O mRNA (fita amarela e azul) viaja até o ribossomo (roxo e azul, no centro da imagem), que produz uma proteína (vermelho)

(foto: Getty Images)

Pedras pelo caminho

Mas é claro que a ideia não funcionou logo de cara. A principal barreira a ser superada tinha a ver com o fato de o mRNA ser uma molécula muito frágil — como se trata apenas de uma mensageira, ela logo se degrada no organismo.





Nos primeiros experimentos, os mRNAs sintetizados em laboratório sequer conseguiam chegar perto das células. Eles estragavam pelo caminho, antes de cumprir a missão para o qual foram projetados.

Além disso, esses compostos se mostraram altamente inflamatórios. Eles geraram uma reação imunológica forte, que colocava em risco o próprio uso desse princípio na medicina.

Essas dificuldades foram superadas graças a dois trabalhos distintos. O primeiro deles, comandado pelo médico americano Drew Weissman e pela bioquímica húngara Katalin Karikó, descobriu que algumas modificações básicas na estrutura do mRNA poderiam deixá-lo menos inflamatório.

O segundo, que envolveu vários grupos de pesquisa, como o comandado pelo bioquímico canadense Pieter Cullis, descobriu que "embrulhar" a fita de mRNA numa nanopartícula de lipídios (ou gordura) é uma forma eficaz de protegê-lo da degradação. Assim, essa molécula pode ser injetada, viajar pelo organismo e chegar às células onde cumprirá a função para a qual foi projetada.





"Com essas modificações, a ciência estava diante de uma ferramenta potente e poderosa", diz o biomédico Joel Rurik, que estuda essa tecnologia na Escola de Medicina Perelman da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos.

"Trabalhar com o mRNA é algo relativamente simples e rápido. Basta fazer o download da sequência genética no computador e pedir para uma bioimpressora imprimir este material. Você consegue produzir toneladas dele sem a necessidade de usar uma única célula", complementa o cientista, que participou recentemente do Simpósio Internacional de Imunobiológicos da Fundação Oswaldo Cruz/Bio-Manguinhos, no Rio de Janeiro.

"Falamos, portanto, de uma estratégia custo-efetiva, estável, com facilidade de distribuição e que pode ser usada de forma mais ampla ou fácil que muitas ferramentas terapêuticas ou de engenharia imunológica", resume.





Drew Weissman (à esquerda) e Katalin Karikó (à direita) foram dois dos pioneiros nas vacinas de mRNA

(foto: Getty Images)

'Estreia' antecipada

Ainda que os testes clínicos com as primeiras vacinas de mRNA tenham começado no início dos anos 2000, a comunidade científica esperava que as primeiras versões comercialmente disponíveis, aprovadas pelas agências regulatórias, só chegassem ao mercado em meados de 2025.

Até que veio a covid-19 e tudo mudou. A emergência da pior pandemia em um século exigiu que muitos especialistas mudassem os planos e começassem a estudar um vírus absolutamente novo: o Sars-CoV-2.

Assim que o sequenciamento genético do causador da covid foi concluído, ainda em janeiro de 2020, os grupos que já trabalhavam com imunizantes de mRNA para outros patógenos (como o vírus sincicial respiratório) direcionaram os esforços para o novo coronavírus.

Em março daquele mesmo ano, os primeiros estudos clínicos dessas vacinas começaram a acontecer. Dez meses depois, em dezembro, a Food and Drug Administration (FDA), a agência regulatória dos EUA, aprovou os dois produtos com a tecnologia mRNA desenvolvidos e testados pelas farmacêuticas Moderna e Pfizer/BioNTech.





Pouco depois, eles também foram liberados em outras partes do mundo — no Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) deu sinal verde para o uso do imunizante da Pfizer em 23 de fevereiro de 2021.

Essa foi a primeira vez na história que uma vacina de mRNA chegou ao braço das pessoas fora do ambiente das pesquisas científicas.

Ela se baseia naquele princípio explicado no início desta reportagem: cada dose do produto traz uma fita de RNA mensageiro (mRNA), que instrui as células do nosso próprio organismo a fabricar a proteína S (de Spike, ou espícula em português) presente na superfície do coronavírus.

A partir daí, o sistema imunológico reconhece esse material e gera uma resposta, capaz de proteger caso o agente infeccioso de verdade tente invadir o corpo.


As vacinas de mRNA chegaram à população em tempo recorde durante a pandemia de covid-19

(foto: Getty Images)

O que vem por aí

De acordo com a imunologista Cristina Bonorino, professora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, o próximo "passo natural" para o mRNA é que ele seja usado para desenvolver vacinas contra outras doenças infecciosas.





Inclusive, laboratórios já estão realizando testes de imunizantes contra todos os tipos de coronavírus, o influenza, o zika, o chikungunya, a dengue, a malária, o HIV…

Segundo o ClinicalTrials.Gov, site que registra todos os testes clínicos em andamento nos Estados Unidos, existem atualmente 807 estudos do tipo em andamento que avaliam algum aspecto dessa plataforma tecnológica.

"Mas é provável que apareçam outras aplicações do mRNA logo mais em áreas como oncologia e cardiologia", antevê Bonorino.

"O fator que pode limitar ou acelerar esses trabalhos é justamente o dinheiro. Com investimento, é possível fazer as conexões entre os especialistas e resolver muitos dos problemas de saúde mais complexos", complementa ela.

Rurik concorda e classifica esse campo da ciência como "empolgante".

"As vacinas de mRNA usadas contra a covid-19 lançaram um enorme holofote na área. Com isso, vieram os investimentos privados e os programas governamentais de incentivo", contextualiza.





O próprio trabalho do biomédico é um exemplo disso. Nos últimos anos, ele investiga se o mRNA pode servir como uma ferramenta para que as células de defesa reconheçam e destruam fibroblastos "doentes" no coração.

Os fibroblastos são um tipo de célula que forma a estrutura do músculo cardíaco. Quando essas unidades apresentam algum tipo de defeito, isso pode representar a origem de uma doença crônica (como a insuficiência cardíaca) ou aguda (como o infarto).

"Treinar" as células imunológicas para identificar os fibroblastos defeituosos, portanto, pode se tornar, no futuro, um caminho para prevenir as condições que afetam o coração.

Ainda no mundo da cardiologia, outros grupos trabalham com o mRNA como uma forma de baixar o LDL, o colesterol ruim. Essa molécula está diretamente relacionada com uma série de desfechos perigosos, como o próprio infarto e o Acidente Vascular Cerebral (AVC).





Isso porque algumas pessoas possuem um gene que faz elas expressarem demais uma proteína chamada PCSK9, o que leva o colesterol às alturas. Inibir essa fabricação excessiva por meio do mRNA poderia ser um caminho para lidar de forma definitiva com esse fator de risco para tantas doenças cardiovasculares.


O mRNA é testado para uma série de outras doenças além das infecciosas

(foto: Getty Images)

E o câncer?

Aos poucos, a tecnologia do mRNA volta às suas origens: as pesquisas sobre o uso dessas vacinas contra tumores começaram a ganhar mais fôlego nos últimos meses.

"O câncer é uma fonte de muitas mutações genéticas. Além disso, ele tem a característica de produzir certas moléculas capazes de suprimir o sistema imunológico", contextualiza Bonorino.





Em outras palavras, as células cancerosas são capazes de produzir determinadas substâncias que bloqueiam a imunidade. Com isso, as unidades de defesa não reconhecem a ameaça — e o tumor cresce no corpo sem encontrar resistência.

Já existem atualmente tratamentos que tiram essa "venda" das unidades de defesa e permitem que o próprio sistema imunológico passe a atacar o câncer. Esse grupo de fármacos é conhecido como imunoterapia, e está disponível contra o melanoma e outros tipos da doença.

Mas e se fosse possível aplicar uma vacina de mRNA para que o organismo do paciente identificasse certas mutações tumorais mais comuns? Ou ainda criar um produto farmacêutico totalmente personalizado, baseado nas alterações genéticas que aparecem em cada indivíduo com câncer?

"Além disso, um dos grandes sonhos da oncologia sempre foi desenvolver uma espécie de ‘memória imunológica’ contra o câncer, de modo que o sistema imune saiba quando o tumor retornou ou está se espalhando para outros tecidos", acrescenta a imunologista.





Todas essas possibilidades estão sendo testadas agora por grupos de pesquisas e farmacêuticas.

O passo concreto mais recente do mRNA contra o câncer foi anunciado pelos laboratórios Moderna e MSD: uma vacina experimental contra o melanoma foi capaz de diminuir o risco de morte em 44% quando associado à imunoterapia.

Vale ponderar, no entanto, que o produto ainda está em desenvolvimento e precisa passar por novas etapas de estudo antes de chegar às clínicas e aos hospitais.


As fitas de mRNA, como as retratadas na ilustração, são produzidas pelas nossas células %u2014 e serviram de base para o desenvolvimento de novas tecnologias

(foto: Getty Images)

Muito além do câncer

Por fim, Rurik aponta que o mRNA não é mais uma plataforma exclusiva para doenças infecciosas, cardíacas ou oncológicas.

"Também já vemos estudos em andamento para tratar lúpus e outras doenças autoimunes", exemplifica.

Mas, para que isso realmente aconteça, os cientistas precisarão ainda trabalhar bastante para provar a segurança e a eficácia de tantas novidades.

O principal desafio será demonstrar que todas essas terapias não geram problemas no sistema imunológico ou prejudicam o funcionamento de órgãos vitais, como o fígado.

"Mas é inegável que há muita coisa acontecendo agora com o mRNA, e tenho certeza que ideias ‘malucas’, que imaginávamos impossíveis, virarão realidade nos próximos cinco anos", acredita o biomédico.

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