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O mieloma múltiplo corresponde a 10% dos casos de cânceres das células do sangue: efeito terapêutico após uma infusão de células CAR-T

ColiN00B/Pixabay

A busca por novos tratamentos para os mais de 100 tipos conhecidos de câncer nem sempre se concentra no potencial curativo. Muitas pesquisas têm como foco pacientes para os quais as opções disponíveis se esgotaram. Ontem, no congresso da Sociedade Norte-Americana de Oncologia Clínica (Asco), em Chicago, nos Estados Unidos, quatro estudos mostraram avanços significativos nas respostas a medicamentos — em um caso, chegou a 100%.

Um dos trabalhos, da Faculdade de Medicina de Wisconsin, freou em 76% a progressão de mieloma múltiplo, um tipo de câncer hematológico, em pessoas que fizeram o tratamento padrão, com a substância lenalidomida, mas sofreram recorrência. Entre os participantes que não receberam o novo tratamento, o percentual em 12 meses foi de 49%. A terapia baseia-se na tecnologia CAR-T, que reprograma geneticamente as células de defesa do tipo T do próprio paciente.

 

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Uma inovação da substância, chamada ciltacabtagene autoleucel (Cilta-cel), é que bastou uma infusão das células CAR-T para se obter os resultados — atualmente, os pacientes precisam passar por inúmeras sessões de quimioterapia, o que debilita o organismo. O Cilta-cel foi aprovado no ano passado pela Food and Drug Administration (FDA), dos Estados Unidos, para adultos com mieloma múltiplo que sofreram recidiva ou não responderam à primeira linha após passarem por pelo menos outras quatro opções de tratamento, com alta exposição à toxicidade desses medicamentos.

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O estudo apresentado ontem foi o primeiro de fase 3 (a última antes de o tratamento estar pronto para aprovação dos órgãos regulatórios) para avaliar a segurança e a eficácia de uma terapia à base de células CAR-T para mieloma múltiplo. Esse câncer afeta estruturas da medula óssea chamadas plasmócitos, responsáveis por produzir anticorpos que combatem vírus e bactérias. A doença não tem cura e é considerada rara — no Brasil, estima-se que existam 150 mil casos.

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A pesquisa incluiu 419 pacientes que não responderam à lenalidomida e haviam passado, anteriormente, por entre uma a três linhas de terapia. Desses, 208 receberam o Cilta-cel, e os demais ficaram com o medicamento padrão. Na apresentação do estudo, o oncologista Binod Dhakal, de Wisconsin, afirmou que o tratamento atual para pessoas com mieloma múltiplo é "um fardo considerável". "Geralmente, eles têm recaída após cada linha de terapia, com períodos de remissão progressivamente mais curtos. Esses pacientes sofrem pior qualidade após cada recaída, com o aumento das linhas de tratamento." 

 

Na sessão de discussão dos resultados promovida pela organização do Asco, Asher Alban Akmal Chanan-Khan, oncologista da Clínica Mayo de Jacksonville, na Flórida, destacou a importância do estudo, do qual não fez parte. "Impressionou-me que esse benefício foi alcançado com tratamento limitado versus contínuo, e sem preocupações adicionais de toxicidade". Para Chanan-Khan, "o estudo mudará o paradigma de tratamento", tornando-se a primeira linha para mieloma múltiplo. "Ficamos imaginando se esse estudo aponta para o começo do fim de uma longa busca para curar essa doença."

Resposta completa

Pacientes sem mais opções de terapia padrão também foram o foco do estudo Ragnar, que avaliou a eficácia de um medicamento oral chamado erdafitinibe em um grupo de 240 pessoas com tumores avançados ou metastáticos com uma mutação no gene FGFR. Os testes tiveram como alvo mais de 20 tipos de câncer, incluindo pâncreas, mama e colorretal.

O trabalho apresentado no Asco refere-se a uma análise interina, com resultados de 178 pessoas. Dessas, três alcançaram resposta completa, 49, parcial e 77 mantiveram-se estáveis. "Juntas, a taxa de benefício clínico, definida como a soma das taxas de resposta parcial, resposta completa e doença estável mantida por pelo menos quatro meses, foi de 48,9%", explicou Yohann Loriot, pesquisador da Universidade de Paris-Saclay, Villejuif, na França.

"Não houve um tumor específico que o resultado foi melhor que o outro, até porque o número de pacientes é pequeno, mas, mesmo os tumores de difícil tratamento, como de pâncreas e do sistema nervoso central, apresentaram boas respostas", comenta Denis Jardim, líder da especialidade de tumores urológicos do Grupo Oncoclínicas e um dos investigadores do estudo. Segundo o oncologista, que também é do Comitê Científico do Instituto Vencer o Câncer, três em cada 10 pacientes tiveram redução de tamanho nos tumores. "Lembrando que eram pacientes sem tratamento efetivo", enfatiza.

Ação combinada

Yohann Loriot também apresentou resultados do estudo Norse, com 87 pacientes de carcinoma de bexiga que tinham alteração no gene FGFR e não eram elegíveis para o tratamento de primeira linha. "Esse estudo mostra que quando só foi dado o erdafitinibe, 44% dos pacientes responderam. Com a combinação de erdafitinibe e imunoterapia, no caso o cetrelimab, 54,5% dos pacientes responderam", conta Denis Jardim, do Grupo Oncoclínicas.

Em média, a doença progrediu nos pacientes que fizeram uso da terapia combinada depois de 10,9 meses, contra 5,6 meses registrados no grupo que recebeu apenas o erdafitinibe. "Essa é uma população realmente para a qual os tratamentos não são tão eficazes, já que não pode receber a quimioterapia com cisplatina", destaca Jardim. "Então, esses resultados de tempo de controle de doença e também a chance de estar vivo em 12 meses são bastante animadores com a combinação da imunoterapia com erdafitinibe", avalia.

O estudo Norse é um recorte de uma pesquisa maior, Thor, que avaliou o erdafitinibe em 266 pacientes de carcinoma urotelial que não tiveram resposta em até duas terapias anteriores. Os dados mostram que o tratamento reduziu em 36% o risco de morte em dois anos de acompanhamento, comparado ao padrão. "Prevemos que o efeito dos resultados do estudo será significativo", disse Yohann Loriot, na apresentação. "Eles fornecem evidências que mudarão as diretrizes atuais", acredita. Paulo Lages, oncologista com foco em tumores geniturinários, acredita que o trabalho não mudará a indicação de terapia de primeira linha. "Mas vai mudar, sim, a ordem em que a gente pensa a sequência de tratamento."

 

Terapia revolucionária, diz especialista

"O tratamento com a tecnologia das células CAR-T para mieloma múltiplo é revolucionário. Primeiro, porque ele vem cobrir situações que chamamos de necessidades médicas não atendidas, que é quando o paciente que já foi exposto a duas ou três linhas de tratamento anterior se torna refratário. A tecnologia CART-T atende a essa necessidade, porque esse era um cenário para o qual não tínhamos uma linha de tratamento e também porque essa tecnologia não se vale do uso de nenhum remédio farmacológico. Trata-se de uma espécie de treinamento do sistema imune do próprio paciente para o combate ao mieloma múltiplo. De forma extremamente surpreendente, os resultados têm se mostrado altamente eficazes para o controle da doença. É importante relatar que o mieloma múltiplo é a doença hematológica onde se teve o maior avanço na expectativa e na qualidade de vida dos pacientes. Nos últimos 20 anos, a sobrevida global mais do que dobrou, nós passamos de taxas de 30% em cinco anos para 70%. Ainda não é uma doença curável, mas a gente vem empregando a expressão cura funcional. Ou seja, o paciente ainda tem a doença no organismo, mas ela não compromete sua qualidade de vida e, em alguns casos, nem a expectativa de vida. O tratamento com as células CAR-T vem adicionar novas perspectivas para esses pacientes. Trata-se, sim, de uma revolução.

Jorge Vaz, onco-hematologista do Grupo Oncoclínicas Brasília