Na esclerose múltipla (EM), o sistema imunológico ataca erroneamente o cérebro e a medula espinhal — um processo de degeneração que pode levar à perda de mobilidade e de independência. Com o objetivo de compreender melhor por que essa doença autoimune se agrava mais em alguns pacientes, um grupo internacional de pesquisadores chegou a uma descoberta significativa: eles identificaram a primeira variante genética associada a uma progressão mais rápida da EM. Essa novidade, publicada, nesta quarta-feira (28/06), na revista Nature, representa um marco importante no conhecimento e no combate à doença, dizem especialistas.
Para explorar questões relacionadas à gravidade da esclerose múltipla, dois consórcios de pesquisa dedicados à doença, o International Multiple Sclerosis Genetics Consortium (IMSGC) e o MultipleMS Consortium, uniram forças. Mais de 70 instituições ao redor do mundo contribuíram com o estudo que investigou mais de 20 mil casos da patologia. O trabalho foi liderado pela Universidade de Cambridge, no Reino Unido, e pela Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos.
O grupo investigou 7 milhões de variantes genéticas e identificou uma que está associada ao avanço mais rápido da doença. Essa variante está entre dois genes, DYSF e ZNF638. O primeiro tem ligação com o processo de infecção de células imunes, enquanto o outro desempenha um papel no controle de sobrevivência viral. A proximidade da variante genética sugere que eles podem estar envolvidos na progressão da doença.
"Esses genes são, normalmente, ativos no cérebro e na medula espinhal, e não no sistema imunológico", afirma, em nota, Adil Harroud, principal autor do estudo. "Nossas descobertas sugerem que a resiliência e o reparo no sistema nervoso determinam o curso do desenvolvimento da EM e que devemos nos concentrar nessas partes da biologia humana para melhores terapias."
Conforme Sergio Baranzini, da Universidade da Califórnia e coautor sênior do estudo, herdar essa variante — tanto do pai quanto da mãe — acelera em quase quatro anos a necessidade de auxílio para caminhar. "Achamos que a descoberta pode ser usada para identificar indivíduos em risco de progressão mais rápida e, assim, iniciar o tratamento mais cedo", cogita.
O cientista também avalia que a pesquisa poderá acelerar a produção de novos medicamentos para a doença. "Ter informação genética reduz significativamente os riscos no desenvolvimento de drogas. Essa descoberta definirá uma série de abordagens que visarão cuidar do avanço da EM. A genética relacionada à gravidade da doença sugere que o sistema nervoso central deve ser o alvo dessa nova classe terapêutica", explica.
Prognóstico
Aline Leite, neurologista do Instituto de Neurologia de Goiânia, conta que alguns marcadores genéticos foram, anteriormente, associados à doença, mas não havia ainda essa relação com a progressão da EM. "Tem paciente que, com 10 anos de esclerose múltipla, não tem incapacidade, já outros que, no mesmo tempo, passam a sofrer com essa questão. Então, esses fatores genéticos estão sendo associados não só com a origem da patologia, mas também com o prognóstico e a gravidade."
Priscilla Mara Proveti, neurologista do Hospital Anchieta em Brasília, acredita que o trabalho poderá contribuir para o melhoramento das abordagens em pacientes com EM. "Evoluímos muito na parte de tratamento da inflamação em razão da doença, conseguimos criar terapias que controlam melhor o processo inflamatório. Ainda existe outra questão que está um pouco encoberta, a degeneração. E esse tipo de estudo abre uma porta para realmente avaliar e conseguir tratar esse aspecto da doença."
Segundo os autores, mais trabalhos são necessários para determinar como essa variante genética afeta os dois genes, DYSF e ZNF638, e o sistema nervoso em geral.
A equipe também está coletando um conjunto ainda maior de amostras de DNA de pessoas diagnosticadas com EM, na esperança de encontrar outras variantes que contribuam para os quadros de incapacidade. "Estamos entusiasmados em descobrir mais variantes genéticas que podem ajudar a desenvolver tratamentos mais eficazes", diz Baranzini.
O estudo da genética da esclerose múltipla tem sido relevante na Universidade de Cambridge desde o fim dos anos 1980. Membros do Departamento de Neurociências Clínicas estiveram intimamente envolvidos na descoberta da grande maioria das variantes genéticas que aumentam a suscetibilidade à doença. "Mais uma vez, o trabalho (atual) ilustra os benefícios da colaboração internacional para o avanço da compreensão dos mecanismos da doença na esclerose múltipla e outras condições médicas", afirma Alastair Compston, professor de neurologia da instituição britânica e integrante do grupo de pesquisadores.
Palavra de especialista: marcadores cruciais
Marcadores de doença sempre foram amplamente pesquisados. Eles que vão, primeiro, determinar o diagnóstico e, depois, colaborar com o que a gente chama de prognóstico. Eles nos ajudam a identificar aqueles pacientes que podem apresentar uma maneira mais agressiva da doença ou uma forma mais leve. Esse artigo está mostrando que ter esse marcador pode indicar gravidade. Assim, as pessoas podem receber um tratamento mais adequado, a abordagem tem que ser personalizada, pois os deficits são individuais. Essa pesquisa é crucial para que a gente consiga ter terapêuticas mais funcionais. Dessa forma, é possível ter um resultado melhor, com menos incapacidade, o paciente ativo e fazendo suas atividades normalmente."
Sérgio Jordy, neurologista da Rede D'or e diretor do Centro Médico Sinapse