Um relatório global divulgado neste mês pelo Unaids — entidade ligada à Organização das Nações Unidas (ONU) — apontou que o Brasil está no caminho para acabar com a epidemia de Aids como ameaça à saúde pública até 2030. Isso, porém, não reduz o grave problema social que está por trás da disseminação da doença. O alerta é de Ariadne Ribeiro, oficial da Igualdade e Direitos do Unaids Brasil. Ela salienta que as populações marginalizadas continuam sendo as mais afetadas pela transmissão do HIV. Segundo relatório, intitulado O Caminho que Põe Fim à Aids , o Brasil tem uma proporção para a Aids de 88-85-95 — ou seja, 88% das pessoas que vivem com HIV conhecem seu status sorológico, 85% das pessoas que sabem que vivem com HIV estão em tratamento antirretroviral e 95% das pessoas em tratamento estão com a carga viral suprimida. A meta a ser alcançada é 95-95-95 em todo mundo. Leia a seguir os principais pontos da entrevista ao Correio .



 

O que o Brasil precisa fazer para chegar a 2030 sem que a Aids continue a ser um grave problema de saúde pública?

A Aids só é desenvolvida se pessoas que vivem com HIV não se tratam. O que a gente precisa fazer é com que todas pessoas conheçam seu diagnóstico. Todo mundo precisa se testar, como se fosse exame de rotina. Se uma parcela da população não realiza a testagem, não sabe que tem o vírus — o que ocasiona a demora para conseguir o tratamento —, isso resulta em uma alta taxa de mortalidade. As medicações atualmente oferecidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) interrompem a cadeia de transmissão e fazem com que as pessoas que têm o HIV tenham uma melhor qualidade de vida. Nossa maior dificuldade está relacionada à desigualdade no Brasil, às populações marginalizadas — em especial os jovens e negros. A estratégia de saúde pública só funciona se for oferecido para as pessoas que mais precisam as mesmas condições.

Qual o perfil do brasileiro que tem Aids atualmente?

Quem se infecta mais com o HIV são homens que fazem sexo com outros homens. Porém, quem morre mais pela infecção que o vírus ocasiona são mulheres negras. Há uma interferência desse viés de raça. Isso altera a forma como os serviços de saúde chegam à população branca e negra. Vai além do atendimento pelo SUS. Há mulheres, por exemplo, que vivem uma cultura de perdoar a traição, e outras nem sabem que estão sendo traídas pelos companheiros — isso gera o desconhecimento da sua condição e a falta de tratamento. A informalidade dos empregos cada vez mais frequente também faz com que muitos direitos de saúde deixem de ser garantidos pelas empresas e, assim, as pessoas são negligentes em função de outras necessidades. O medo de passar fome vai se sobrepor à saúde.

No levantamento divulgado pela Unaids, o Brasil aparece como um dos únicos que têm distribuição na rede pública do medicamento contra a Aids. Como isso diferencia o país dos outros do continente?

O Brasil sempre foi vanguardista no aspecto da saúde. A gente tem uma percepção de que o SUS é um dos modelos mais apropriados para a redução da desigualdade na oferta de medicamentos à população. Nos outros países, ainda estão se discutindo pacotes essenciais de medicação. A saúde em outros países ainda é artigo de luxo e se estuda mundialmente qual a melhor forma de criar projetos parecidos com o SUS. Nosso sistema de saúde pública é uma das experiências mais relevantes globalmente. A medicação entregue pelo SUS tem eficácia comprovada e tem uma quantidade de efeitos colaterais muito menor do que as percebidas ao longo das décadas. É mais facilitado — não existe a necessidade de ter várias doses, é apenas uma dose diária de dois comprimidos. É importante ressaltar que os investimentos dos governos para desenvolver medicação para as pessoas que vivem com o HIV foram essenciais para sabermos lidar com outras epidemias e pandemias, como a de covid-19 e Monkey Pox (varíola do macaco). Os avanços no desenvolvimento das vacinas, por exemplo, é fruto do investimento nas pesquisas e tecnologias que desenvolveram as medicações para Aids, e foram financiadas pelas Nações Unidas. É uma das maiores retribuições para a sociedade que a gente conseguiu.





Um dos principais problemas apontados pelo relatório é chegar no público-alvo, que, pelos dados, são principalmente homens homossexuais, homens que fazem sexo com outros homens e pessoas trans. Por que isso acontece?

Algumas populações vão ter menos acesso à educação e à saúde por conta da vulnerabilidade social. Na população trans, por exemplo, há uma marginalização compulsória — muitas vezes não tem apoio da família, da escola ou do trabalho. A estratégia para conseguir fazer com que essas pessoas tenham acesso à medicação da Aids vai além da saúde. É cidadania. Precisa fortalecer outras políticas públicas para acompanhar e acolher essa população.

No Brasil, vários ambulatórios trans estão sendo abertos. Isso é uma forma de melhorar os índices do relatório da Unaids?

O ideal é sempre ter estratégias combinadas. Se você sabe que uma determinada população tem uma demanda específica de saúde, por que não oferecer um pacote de serviços apropriados dentro da saúde integral? Quando a pessoa é atendida em ambientes específicos, pode ser acompanhada, fazer testagem, sorologia e, se necessário, fazer o tratamento. É um aspecto de equidade, saúde voltada para as pessoas e muito mais efetivo que serviços separados.

O que a sociedade precisa fazer para alcançar a meta 95-95-95?

A sociedade como um todo tem que entender que o HIV não é problema só de populações específicas, não escolhe quem vai infectar. Se a pessoa tem vida sexual ativa, tem que manter a rotina de exames e testagem. Assim, temos estratégia funcionando e caminho para acabar com a Aids como ameaça à saúde pública.

 

 

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