SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Houve uma mudança de estratégia na disseminação de notícias falsas sobre vacinação contra a Covid-19 no Brasil. Narrativas usando figuras caricatas como jacarés e chips chineses, muito usadas durante a pandemia, foram substituídas por falas de médicos ou outros profissionais da saúde, que adotam um discurso anticientífico para associar os imunizantes a efeitos colaterais graves e doenças.
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Foram coletadas cerca de 48 mil menções com narrativas manipuladas de ataque ou crítica à vacinação para combater a Covid-19. O alcance estimado das publicações é de 240 milhões no acumulado durante o período do monitoramento.
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O trabalho foi entregue ao Ministério da Saúde. No mês passado, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, disse à reportagem que condutas criminosas de médicos e de outras pessoas que vão às redes falar que as pessoas vão morrer se tomar a vacina ou ter alguma sequela terão que ser punidas.
A principal narrativa manipulada, segundo o estudo, é a que afirma que a vacina contra Covid-19 pode gerar problemas cardíacos (30 mil menções). Em seguida, vem a informação de que a imunidade natural dispensa o uso de vacina (8.000 menções).
Além do monitoramento das redes, o estudo envolveu também uma pesquisa quantitativa online, com 1.329 entrevistas. Mais de um quinto (21%) das pessoas ouvidas reproduz o discurso de que a vacina protege contra a Covid, mas não faz bem à saúde. E 3% dizem que não protegem e não fazem bem.
O estudo avaliou também a influência da fonte de informação na decisão sobre a imunização. As pessoas que se informam pelos canais tradicionais de mídia (19%), ou por meio dos órgãos de saúde oficiais (26%), apresentam maior adesão à vacinação.
Esses grupos tomaram cinco doses da vacina contra a Covid-19. Na outra ponta, grupos com baixas médias de imunização, com uma ou duas doses, informam-se pelas redes sociais (28%) e WhatsApp (24%).
"Quem mais recebe fake news é quem se informa pelas redes sociais e WhatsApp. O uso da rede está vinculado à qualidade da informação que a pessoa recebe", diz o historiador Marcus Flora, analista-chefe do Núcleo de Integridade da Informação da agência Nova SB.
Segundo ele, em geral, os profissionais da saúde com discurso antivacina não se apresentam como sendo de algum hospital ou serviço de saúde, mas se identificam como médicos, enfermeiras, dentistas e se valem da credibilidade dessas profissões para transmitir notícias falsas.
Flora afirma que a rede de desinformação é abastecida também por uma significativa produção de vídeos vindos do exterior, de pessoas que também se dizem médicas e cientistas.
"O cidadão comum nem consegue checar se é um profissional da saúde de fato ou se é um charlatão se passando por tal. O quadro vem legendado, falando em outra língua. É um caminho de busca de credibilidade", diz ele.
De acordo com o historiador, o movimento antivacina também têm propagado notícias falsas sobre a vacina bivalente, associando-a problemas, câncer e aborto. Utilizam, por exemplo, supostos casos reais de grávidas que se vacinaram e logo depois perderam o bebê para "chancelar" a narrativa e gerar o receio em torno do imunizante.
Dados de todo o Brasil atestam que a procura pela bivalente está muito baixa. Desde 24 de abril, o Ministério da Saúde liberou a vacina bivalente para todos aqueles com mais de 18 anos e deixou que cada governo local decidisse a disponibilidade da dose. Até agora, cerca de 13% do público elegível no Brasil se preocupou em tomar a nova dose, com cobertura especialmente baixa entre os mais jovens
O historiador diz que, em geral, essas postagens tratam de fatos episódicos como sendo a comprovação de efeitos negativos da vacina. "A fake news trabalha especialmente o medo, o pânico, a insegurança. Em vez de rejeitar a vacina com o argumento de que ela não resolve o problema, eles dizem que tem uma série de efeitos colaterais."
Conforme reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, a Associação Médicos pela Vida (MPV), que já havia sido condenada pela Justiça a pagar R$ 10 milhões por danos à saúde pública por promover medicamentos ineficazes contra a Covid-19, agora vem apostando no discurso antivacina.
Segundo a reportagem, a entidade trabalha conjuntamente e replica métodos de grupos de médicos negacionistas de fora do país, como foi detectado pela pesquisa da Nova SB. Também recebe apoio e dá visibilidade a empresas de "terapias alternativas", que oferecem seus produtos como opção a quem não quer tomar o imunizante ou a quem quer passar por um "detox vacinal".
A entidade divulga seu conteúdo em site próprio, com lives semanais; nas redes sociais próprias e de seus principais líderes, e em eventos presenciais e online.
Em uma nota em nota pública divulgada no seu site, o MPV disse repudiar "a acusação descabida de desinformação", afirmou que faz um "debate científico sério" e noticia o que é "benéfico aos pacientes". Também acusou outros setores de espalharem desinformações, entre os quais a imprensa, e citou estudos e textos que demonstrariam os supostos males da vacina contra a Covid-19, que já foram amplamente contestados por especialistas em vacinação.
Procurado, o Conselho Federal de Medicina disse que funciona como "uma instância de julgamento em grau de recurso, não comenta casos concretos com o intuito de manter sua isenção". Afirmou ainda que "denúncias envolvendo médicos podem ser feitas junto ao Conselho Regional de Medicina onde ocorreu a situação".
ADESÃO À VACINAÇÃO TEM VIÉS POLÍTICO
A etapa quantitativa do estudo Nova SB apontou um viés político muito forte na adesão à vacinação contra a Covid-19 no país. Entre as pessoas que tomaram só uma ou duas doses da vacina, por exemplo, 13% votaram no presidente Lula (PT) e 31%, em Jair Bolsonaro (PL). Já entre aqueles que tomaram as cinco doses, 19% votaram em Lula e 9%, em Bolsonaro.
A inclinação se repete quando a pergunta é sobra a imunização contra a gripe. Entre os que já se vacinaram, 43% voltaram em Lula e 30% em Bolsonaro; já aqueles que não se vacinaram, 55% em Lula e 67% em Bolsonaro.
Segundo o pesquisador Marcos Flora, as fake news sobre doses de reforço da vacina anti-Covid têm um alto poder de disseminação e impacto sobretudo entre eleitores de Bolsonaro.
"Os perfis analisados operam com o sentimento de medo da população mais vulnerável e menos escolarizada, espalhando histórias sobre supostos efeitos colaterais, doenças e óbitos que seriam causadas pela vacina. Além do medo, as fake news provocam sentimentos como desconfiança, dúvidas, receios e pânico."
Apesar desse cenário, o estudo traz alguns dados positivos sobre as vacinas. Perguntados se o imunizante é pouco, médio ou muito importante no combate a doenças, a maioria respondeu muito importante e a nota obtida foi de 9,1, numa escala de 0 a 10.
Mesmo assim, o índice médio de adesão às vacinas oferecidas no SUS caiu de 95,07% em 2015 para 67,94% no ano passado, segundo o Ministério da Saúde.