Nosso olhar se volta para os avanços notáveis na interseção entre a ciência moderna e a sabedoria ancestral. Os cogumelos, que há muito tempo são reverenciados por culturas antigas, estão se tornando um pilar revolucionário na abordagem de problemas complexos, como ansiedade, depressão e vícios . O conhecimento acumulado ao longo de séculos é agora enriquecido pelas últimas descobertas no campo da neurociência e da biologia, redefinindo o futuro da medicina psicodélica.
Leia também: Psicodélicos: BH vai sediar pesquisa para tratamento de transtorno mental
Esses organismos podem ser divididos em dois grupos distintos: os comestíveis e os psicodélicos. Enquanto alguns são amplamente utilizados na alimentação diária e oferecem benefícios nutricionais, outros possuem propriedades psicotrópicas e podem causar efeitos alterados de percepção e consciência.
Leia também: Plasticidade do cérebro: nova maneira de pensar, agir e aprender
"A estrutura que chamamos de cogumelo é o corpo de frutificação. Alguns são comestíveis, utilizados na alimentação diária, e incluem champignon, shiitake, shimeji, cogumelo Paris, funghi secchi, entre outros", explica o professor de ciências biológicas do Ceub Stefano Aires. Já os psicodélicos, também chamados de cogumelos mágicos, possuem propriedades psicotrópicas e são diferentes dos comestíveis. "O psilocybes é o cogumelo psicodélico mais conhecido no Brasil, mas há várias outras espécies com propriedades psicotrópicas, algumas delas utilizadas para pesquisa nos EUA."
Leia também: Saúde mental: prevenção e promoção melhoram qualidade de vida da sociedade
Estudos demonstraram que a terapia assistida com psilocibina, composto psicodélico de ocorrência natural encontrado em certas espécies, pode ter efeitos positivos nas condições de saúde mental, incluindo depressão resistente ao tratamento, ansiedade e transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) . "A psilocibina tem o potencial de induzir experiências místicas, que podem levar a percepções profundas e processamento emocional aprimorado", explica o neurocientista e mestre em psicologia Fabiano Rodrigues.
Entenda as diferenças
- Geralmente, é difícil identificar cogumelos sem o auxílio de um especialista, especialmente distinguir cogumelos tóxicos dos comestíveis ou psicodélicos. Os tóxicos, em geral, são coloridos, como a amanita muscária, um cogumelo vermelho com bolinhas brancas. Eles podem conter substâncias psicotrópicas, mas também são letais em certas quantidades.
- Além dos cogumelos psicodélicos, existem outros que podem conter toxinas, como as aflatoxinas, que são produzidas por fungos que podem contaminar o trigo e o amendoim, causando problemas hepáticos se ingeridas.
- Encontrar cogumelos na natureza e consumi-los sem conhecimento pode ser perigoso, uma vez que muitos cogumelos são tóxicos e possuem mecanismos de defesa para evitar a predação. Para identificá-los com segurança, é necessário o auxílio de especialistas com conhecimento específico sobre cogumelos.
Potenciais medicamentosos
As pesquisas do neurocientista e mestre em psicologia Fabiano Rodrigues, pesquisador no campo de nutrigenética, genoma e neurociências, têm contribuído para o avanço do conhecimento nessas áreas. Autor de diversos artigos científicos e livros, ele explica melhor os estudos sobre o uso de cogumelos pela ciência:
Psilocibina
É um composto psicodélico de ocorrência natural encontrado em certas espécies de cogumelos, muitas vezes referidos como cogumelos mágicos ou cogumelos de psilocibina. Quando ingerida, a psilocibina é convertida em sua forma ativa, a psilocina, que interage com os receptores de serotonina no cérebro, particularmente os 5-HT2A. Isso resulta em percepção, humor e consciência alterados.
Ibogaína
É um alcaloide psicoativo derivado da casca da raiz do arbusto Tabernanthe Iboga, nativo da África central. Tem sido investigado por seu potencial no tratamento de dependências químicas, particularmente de opiáceos. Atua em vários sistemas de neurotransmissores, incluindo os de serotonina, dopamina e opioides.
Mecanismos de ação
- Aumento da produção de citocinas (regulação e coordenação da resposta imunológica do corpo).
- Alguns cogumelos medicinais têm demonstrado a capacidade de ativar células imunológicas, como células Natural Killer (NK) e macrófagos, que são importantes para a defesa do organismo contra patógenos e células cancerígenas.
- Aumento da atividade de células T (células-chave do sistema imunológico, responsáveis por reconhecer e destruir células infectadas ou anormais).
- Propriedades antioxidantes (polissacarídeos e triterpenos, que podem ajudar a proteger as células imunológicas dos danos causados pelos radicais livres).
Atenção para o uso
- Pacientes e profissionais de saúde devem estar cientes antes de considerar o uso terapêutico de cogumelos no tratamento de doenças mentais, dependências químicas ou para melhorar o sistema imunológico , portanto as devidas precauções devem ser tomadas, como:
- Consultar um médico
- Saber a procedência
- Ficar atento às questões legais
- Saber o histórico de saúde mental
- Saber a dosagem adequada, a preparação e a integração
- Estar cientes dos riscos e efeitos colaterais
Como usar
- É determinada uma dosagem adequada de cogumelos para o tratamento e que pode variar de acordo com as diferentes condições de saúde e histórico dos pacientes. Para isso, avalia-se o peso corporal, a sensibilidade à substância, o propósito de intervenção, as condições de saúde, o histórico do paciente e os compostos ativos da substância.
- "Em minha experiência profissional, a depressão, o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), a dependência química (especialmente tabagismo), a ansiedade e seus derivados foram doenças e transtornos de dependência química que têm mostrado resultados promissores com o uso terapêutico de cogumelos", afirma Fabiano Rodrigues.
- É importante destacar que os cientistas estudam e extraem substâncias dos cogumelos para a produção de um medicamento — estes, sim, são aprovados para fins medicinais. Chás e derivados ainda estão em fase de estudos.
Palavra do especialista/ Raphael Boechat é psiquiatra e professor da Universidade de Brasília (UnB)
O uso de cogumelos é uma questão complexa e experimental?
Sim. É preciso ter cautela ao abordar o uso terapêutico de cogumelos. Embora esse tema esteja ganhando destaque, é importante não perder de vista os riscos associados ao consumo de cogumelos como alucinógenos. Há estudos sobre o uso da psilocibina para várias condições, desde dores de cabeça até questões neurológicas. É essencial abordar o tema com cuidado e evitar expectativas infundadas de ganhos milagrosos.
Qual é a relação entre o uso de cogumelos com propósitos alucinógenos ao longo do tempo e o desenvolvimento de quadros psicóticos graves?
O uso de cogumelos com propósitos alucinógenos é uma prática antiga, que remonta há muitos anos. No entanto, é necessário compreender que algumas pessoas desenvolvem quadros psicóticos graves, de difícil tratamento ou até mesmo irreversíveis, como a esquizofrenia.
Como a ação colinérgica da psilocibina, presente em certos cogumelos, se compara à ação da esketamina, um medicamento recentemente aprovado para casos graves de depressão?
A psilocibina, uma substância encontrada em certos cogumelos, possui uma ação colinérgica. Quando ingerida, pode levar a um quadro de delírio colinérgico, com alucinações, alterações na percepção e sintomas de intoxicação, como náuseas e vômitos.
Qual é o papel da Anvisa na classificação e regulamentação de substâncias psicoativas e como isso pode afetar a sua classificação legal?
A classificação legal dessas substâncias pode variar de acordo com a legislação e as normas da Anvisa, que é responsável por regular e aprovar medicamentos psicotrópicos no Brasil. Existem substâncias que possuem efeitos psicoativos ou mentais, mas que não são consideradas drogas. Isso é um assunto bastante debatido, não apenas no Brasil. É possível que alguns chás, como o chá de cogumelo ou de outras substâncias psicoativas, possam se enquadrar nessa classificação e exigir cuidados extras por parte do consumidor. Algumas substâncias têm uma aprovação específica para uso terapêutico pela Anvisa, ou seja, aqueles que atuam no cérebro para tratar doenças psiquiátricas ou neurológicas. A esketamina é um exemplo desses derivados, que são opioides, e que possuem aprovação para uso terapêutico.
Como a aprovação da melatonina como suplemento alimentar nos Estados Unidos influenciou a sua importação para o Brasil, e qual a percepção de substâncias que são consideradas drogas?
A melatonina é uma substância com ação psicoativa que gera muita polêmica. Nos Estados Unidos, essa substância é aprovada como suplemento alimentar, o que levava muitas pessoas a irem para lá e trazerem grandes quantidades de caixas para o Brasil, antes mesmo de sua aprovação no país, e que inclusive era vendida em farmácia sem receita. Esse assunto gera discussões amplas que envolvem questões jurídicas, e culturais, e existe uma diferença entre o que a justiça considera como droga e o que o nosso corpo considera como droga, e esse exemplo dos cogumelos é bem claro. Ninguém vai ser preso se tiver portando um cogumelo alucinógeno, mas vai ser preso se tiver portando maconha. Além disso, alguns tipos de cogumelos são muito mais deletérios e têm o risco de dar problemas muito mais graves, inclusive a morte.
*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte