Ilustração demonstrando estimulação do nervo vago

Ilustração demonstrando estimulação do nervo vago

Getty Images
Pela primeira vez no Brasil, dois pacientes receberam implantes de um aparelho de estimulação do nervo vago para tratar depressão resistente.

 

O tratamento, que já vinha sendo usado em pacientes com crises epilépticas, consiste em estimular diretamente o cérebro: o implante ativa o nervo vago, que envia sinais elétricos ao órgão, afetando os neurotransmissores e as áreas cerebrais associadas ao humor.

 

“O que se observou nos pacientes que tinham crises de epilepsia e também sofriam com depressão é que ambos os quadros acabavam melhorando com o uso dos implantes. E aí começou-se a estudar quais seriam os mecanismos do sistema nervoso em que poderiam explicar aquela melhora”, descreve o médico Wuilker Knoner Campos, presidente da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia.

 

Os resultados das pesquisas levaram à autorização do uso do dispositivo em pacientes com depressão resistente nos Estados Unidos, na Inglaterra, e, em 2019, no Brasil — o terceiro país a oferecer a alternativa de tratamento.

 

As cirurgias foram realizadas na últimas sexta-feira (11/8) por Knoner Campos no Hospital SOS Cárdio, em Florianópolis (SC).

 

Segundo Felipe Mendes, neurocirurgião e membro da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia, o implante do aparelho de estimulação do nervo vago pode representar um avanço no tratamento da depressão resistente. “Ao ativar cuidadosamente a estimulação do nervo vago, sao impulsionados circuitos nervosos relacionados ao bem-estar emocional dos pacientes. Espera-se que este procedimento possa ser mais uma ferramenta disponível para os casos graves de depressão, para os quais existem poucas soluções, além de potencialmente reduzir a quantidade de medicamentos daqueles que lutam diariamente contra a depressão”.

Uma das expectativas desse método, de acordo com Felipe, é uma possível redução dos efeitos colaterais frequentemente associados às medicações antidepressivas tradicionais em doses altas. A administração oral desses medicamentos pode resultar em uma série de sintomas adversos que comprometem a qualidade de vida dos pacientes, variando de náuseas a problemas cognitivos. 

 

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A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) informou à reportagem que o sistema que será usado, da marca LivaNova, tem indicação para o “tratamento da depressão crônica ou recorrente para pacientes que estejam em um importante episódio depressivo resistente ao tratamento ou intolerante ao tratamento.”

 

De acordo com o neurocirurgião, os pacientes foram escolhidos pela área de psiquiatria do hospital. Para receber o implante, eles tinham que ter passado, sem resultados suficientemente satisfatórios, por outros tratamentos já estabelecidos para depressão resistente.

 

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Esses tratamentos incluem o uso de cetamina (um anestésico aprovado pela Anvisa para esse fim em 2020); a estimulação magnética transcraniana, uma técnica não invasiva que envolve a aplicação de campos magnéticos de baixa intensidade para estimular áreas específicas do cérebro; e a eletroconvulsoterapia, que envolve a indução controlada de convulsões por meio da aplicação de correntes elétricas no cérebro.

 

“Um deles é médico e, na realidade, tinha alguma resposta ao fazer a eletroconvulsoterapia, que hoje é considerada o tratamento padrão ouro para o quadro, mas sofria com lapsos de memória, que é um dos possíveis efeitos colaterais. Além disso, esse tratamento (eletroconvulsoterapia) requer que o paciente seja sedado, então a cada sessão é um dia ‘perdido’.”

 

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No contexto brasileiro, o tratamento é ainda considerado bastante recente e não é oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

 

Para que um paciente seja elegível para o implante, é necessário que receba uma recomendação por parte de um psiquiatra e seja encaminhado a um neurocirurgião familiarizado com a tecnologia.

 

De acordo com Campos, após as primeiras cirurgias, é esperado que o procedimento se torne mais popular dentro da rede privada de saúde.

Como funciona o implante

Para compreender como o implante age contra a depressão, é fundamental explorar as funções influenciadas pelo nervo vago — alvo do tratamento. Este nervo, que se estende do crânio aos órgãos abdominais, desempenha um papel vital na regulação de diversas funções orgânicas, incluindo coração, pulmões e intestino.

 

“No tronco cerebral, encontramos o 'núcleo do trato solitário', onde as fibras do nervo vago estão conectadas. Esse núcleo processa informações de todo o corpo e reage a alterações, como o aumento da frequência cardíaca. Ele também intercede em problemas, como distúrbios digestivos, regulando a acidez. Esse controle neurológico é crucial, com o nervo vago desempenhando um papel central.”

 

A teoria do uso do estimulador de nervo vago na depressão baseia-se na influência positiva nos aspectos cerebrais do humor e regulação emocional.

 

Estudos sugerem que a estimulação do nervo vago pode modular redes neurais desequilibradas na depressão, contribuindo para a melhoria dos sintomas.

 

A forma como o aparelho estimulador é implantado se assemelha muito à do popular marca passo.

 

Na cirurgia, uma incisão é feita para colocá-lo sob a pele abaixo da clavícula esquerda ou próximo da axila esquerda.

 

Na sequência, uma segunda incisão é realizada no pescoço para fixar três pequenos eletrodos ao nervo vago esquerdo, e esses eletrodos são ligados ao gerador por um condutor sob a pele.


Ilustração mostra como funciona o implante no corpo

Ilustração mostra como funciona o implante no corpo

BBC

 

O paciente fica sob anestesia geral durante o procedimento e é esperado que receba alta no mesmo dia.

 

“Os riscos da cirurgia são considerados muito baixos — são relacionados à cirurgia em si [como infecção, sangramentos e coágulos sanguíneos], e não ao aparelho. Os efeitos colaterais são leves e incluem rouquidão, tosse e soluço, que podem ocorrer porque o nervo vago está ligado ao diafragma”, aponta o neurocirurgião Wuilker Knoner Campos.

 

Em relação à depressão, segundo ele, o pior efeito conhecido seria o implante não auxiliar, de fato, no tratamento.

 

A programação é feita pelos médicos responsáveis por meio de um tablet, e é possível adequar o funcionamento às necessidades e respostas de cada paciente, para potencializar o tratamento ou diminuir os efeitos colaterais, por exemplo.

 

O dispositivo não impede o paciente de iniciar novos tratamentos, como o uso de medicação ou psicoterapia.

 

Testes clínicos feitos com 795 pacientes em cinco anos nos Estados Unidos indicaram melhora significativa da depressão refratária em aproximadamente 70% dos envolvidos, além da recuperação completa de aproximadamente 40% dos pacientes.

Até 30% das pessoas com depressão têm o quadro resistente

Diferentes estudos científicos mostram que, entre pacientes com depressão, 10 a 30% não respondem a quaisquer dos tratamentos disponíveis.

 

Segundo os médicos ouvidos pela BBC News Brasil, as causas para o quadro refratário não são totalmente conhecidas (assim como as da própria depressão), e passam por hipóteses como a diferente metabolização de remédios de forma no organismo até componentes genéticos de cada pessoa.

 

A Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que até 2030 a depressão deve se tornar a doença mais comum do mundo, afetando mais pessoas do que qualquer outro problema de saúde, incluindo câncer e doenças cardíacas. Na América Latina, segundo a OMS, o Brasil é o país com maior prevalência de depressão, além de ser o segundo país com maior prevalência em todas as Américas.

 

Na avaliação do psiquiatra Fábio Aurélio Leite, médico do Hospital Santa Lúcia Norte, de Brasília, com os casos de depressão aumentando nos próximos anos, também é de se esperar que surjam mais casos de depressão refratária, mais difícil de tratar.

 

“Por isso é importante que haja investimento, público e privado, focado nesse grupo. Não acho que novas drogas para a depressão com ações semelhantes às que já existem sejam necessárias — temos medicamentos que funcionam muito bem. O que precisamos é alcançar quem não responde aos tratamentos padrões.”

 

“A depressão é uma das principais causas da ideação suicida, e acredito que qualquer terapia segura e comprovada que diminua esse risco é certamente muito bem-vinda. Uma vida que a gente consiga salvar já vale a pena qualquer esforço”, complementa Leite.