Feito pela primeira vez em 1967 por um médico na África do Sul, o primeiro transplante de coração não dava muita perspectiva de sobrevida ao paciente. Agora, 56 anos depois, com a evolução das técnicas da medicina, o procedimento é considerado a chance para uma vida nova aos portadores de insuficiência cardíaca. O caso do apresentador Fausto Silva, o Faustão, que entrou na fila de transplantes, levantou questionamentos sobre o sucesso do procedimento, que depende de diversos fatores, afirmam especialistas.
Segundo Bruno Bisseli, cardiologista e supervisor do Programa de Insuficiência Cardíaca e Transplante Cardíaco do Hcor (Hospital do Coração), registros internacionais mostram que a sobrevida de transplantados nos últimos dez anos vem melhorando em relação aos anos anteriores, em que pacientes ganhavam apenas alguns meses a mais.
"A média de sobrevida no primeiro ano atualmente é de 80%, o que é muito bom se compararmos aos pacientes que estão na fila e que têm chances de 80% a 90% de mortalidade. A sobrevida média está girando em torno de 13 anos. Existem casos que têm mais de 20 anos depois do os transplantes", afirma Bissoli.
O alagoano Francisco Sebastião de Lima, por exemplo, viveu 34 anos depois de receber um novo coração, aos 17 anos. Ele era o transplantado brasileiro mais longevo e morreu em 11 de abril deste ano.
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Qual foi o primeiro brasileiro transplantado de coração?
O mato-grossense João Ferreira da Cunha, conhecido como João Boiadeiro, foi o primeiro brasileiro e latino-americano a ter o coração transplantado, aos 23 anos, em 26 de maio de 1968. A cirurgia foi no Hospital das Clínicas de São Paulo, e ele viveu por 28 dias.
No mundo, o primeiro transplante de coração foi feito pelo médico sul-africano Christian Barnard. Em 3 de dezembro de 1967, ele retirou o coração de Denise Darvall, morta em um acidente aos 36 anos, e o transplantou em Louis Washansky, 55, na Cidade do Cabo. Washansky morreu 18 dias depois, de pneumonia.
Quais pacientes precisam de transplante?
Os pacientes com insuficiência cardíaca grave, quando não é mais possível contornar a situação com medicamentos. Essas pessoas têm dificuldade para executar atividades físicas do dia a dia, como respirar e caminhar, uma vez que o coração não bombeia sangue suficiente.
O que é necessário para se tornar um doador?
Como não há uma lei que regule a doação de órgãos no Brasil, é a família do paciente que aceita ou não a liberação dos órgãos no momento de sua morte.
No país, a doação de órgãos só pode ser feita por indivíduos com diagnóstico de morte encefálica atestada por especialista e confirmada seis horas depois com exame clínico e por imagem.
O problema é que muitos médicos se esquecem ou deixam de fazer esse tipo de diagnóstico porque estão trabalhando em hospitais sobrecarregados, o que diminui a oferta de órgãos para transplantes.
Todo coração disponibilizado é transplantado?
Não, muito pelo contrário. Segundo o Ministério da Saúde, os órgãos podem ser recusados na hora do transplante por vários fatores, como condições do doador, condições do receptor, condições do órgão e logística. De 2014 a 2021, dos 3.142 corações ofertados pela Central Nacional de Transplantes (CNT), 2.631 foram recusados. Dos 511 aceitos, apenas 441 foram efetivamente transplantados. São descartadas as doações de diabéticos graves, fumantes, idosos e pessoas que tiveram parada cardíaca.
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O novo coração precisa ser compatível com o anterior?
Para que o transplante seja bem-sucedido, é necessário haver compatibilidade imunológica: que os tipos sanguíneos do doador e do receptor sejam compatíveis e que os anticorpos do receptor não agridam o novo órgão. O tamanho do coração doado também tem de ser compatível com o do receptor: um coração pequeno pode não ser suficiente para suprir a necessidade de um corpo grande, assim como um coração grande pode não se encaixar no peito de um receptor pequeno.
Como fica o paciente durante o procedimento?
Durante a troca de coração, o paciente é ligado a uma máquina de circulação extracorpórea, que faz o papel do coração e dos pulmões. O aparelho recebe o sangue venoso e o devolve já oxigenado. O procedimento demora cerca de 10 minutos para ser preparado. A máquina pode manter o paciente vivo por horas, mesmo sem um coração batendo, mas o ideal é usá-la o mínimo possível, para evitar complicações como reações inflamatórias. Problemas desse tipo diminuem a chance de sucesso do procedimento.
Transplante com coração de porco já é realidade?
Em 7 de janeiro de 2022, o coração de um porco foi transplantado pela primeira vez para um humano, no caso, o americano David Bennett Sr., 57, na Universidade de Maryland (EUA). No entanto, ele viveu por apenas dois meses. A equipe responsável pelo procedimento atribuiu a morte a múltiplos fatores.
A tentativa de uso de órgãos de porcos (fígados, corações, rins ou células beta do pâncreas) para transplantes em humanos se dá porque os órgãos têm dimensões e anatomias parecidas com a nossa, além da possibilidade de criar os animais em condições controladas e submetê-los a testes para estudos genéticos e pesquisa de agentes infecciosos.
O suíno que doou o coração para o norte-americano, por exemplo, foi submetido a dez manipulações genéticas: quatro de seus genes foram modificados e seis genes humanos foram introduzidos em seu genoma para induzir tolerância imunológica, evitar inflamação e a coagulação do sangue no interior do coração transplantado.
Bruno Bisseli, cardiologista do Hcor, diz que o resultado inicial desse transplante foi bem satisfatório e destacou que existe uma expectativa muito grande na comunidade científica para o uso nos próximos anos do coração de porcos geneticamente modificados, de maneira consistente.
O coração artificial é uma alternativa viável?
O implante de corações artificiais (mecânicos) já é uma realidade nos EUA e na Europa. Segundo o cardiologista Bruno Bisseli, do HCor, os EUA já realizaram mais de 30 mil implantes deste tipo. Mas eles são limitados a pacientes que apresentam problemas apenas no ventrículo esquerdo. Assim, se uma pessoa tiver disfunção dos dois lados do coração, ele não poderá receber esse implante.
No Brasil, nos últimos dez anos, foram implantados cerca de 90 corações artificiais. Segundo Bisseli, o problema aqui são os custos de importação, procedimento e material. "É inviável pelo SUS pelo custo do material e não tem cobertura da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) para esse tipo de procedimento para convênios", afirma.
Ele cita ainda que existem dois corações artificiais totais, um francês e outro americano, mas os resultados não são tão bons, por ainda serem experimentais.
Como funciona a fila nacional para transplante de órgãos?
O transplante de órgãos no Brasil hoje se dá por meio de uma lista única de espera, valendo tanto para pacientes do SUS como para os da rede privada. É organizada a partir de listas estaduais, macrorregionais e nacional, além de outros mecanismos institucionais.
O agendamento funciona por ordem cronológica de cadastro (ordem de chegada) e segue ainda outros critérios, como compatibilidade, gravidade do caso e tipo sanguíneo do doador. Pacientes em estado crítico, contudo, podem ser atendidos com prioridade.
Sempre que um novo órgão é identificado, a busca por um receptor compatível é feita primeiro na lista de seu estado de origem. As listas regionais são organizadas pelas Centrais Estaduais de Transplantes, que nem sempre encontram um receptor compatível.
Em alguns casos, as próprias centrais recusam o órgão, por considerá-lo inadequado ou por outras questões, como falta de equipe para buscá-lo ou de sala de cirurgia disponível. Nesse caso, ele é encaminhado à CNT, que o oferecerá a outros estados, seguindo a lista de espera nacional.
Quanto tempo um coração pode ficar sem ser transplantado?
O tempo de isquemia do coração, o período em que pode ficar sem irrigação sanguínea e manter suas atividades fora do corpo humano, é de apenas quatro horas, o que o impede de ser transportado para regiões distantes. Por isso, quando um coração é disponibilizado para transplante, ele precisa ser enviado para um estado em que haja hospitais capacitados para o procedimento. E estes se concentram majoritariamente nas regiões Sudeste e Sul do país. Assim, corações disponibilizados no Amazonas dificilmente são aproveitados para transplantes porque aquele estado e os vizinhos não dispõem de infraestrutura necessária.
Hoje, existem soluções que protegem o metabolismo do coração que foi retirado e aparelhos que mantêm o coração batendo e em condições adequadas para o transporte, o que permite captar órgãos a distâncias maiores. Mas ainda assim trata-se de uma corrida contra o tempo.
Como o órgão é levado para o local do transplante?
Os estados podem usar aeronaves da FAB (Força Aérea Brasileira), de companhias aéreas nacionais e das forças de segurança estaduais para o transporte de órgãos.
Quais os cuidados que um transplantado precisa ter?
A principal preocupação no pós-operatório é em relação ao risco de infecção, uma vez que os pacientes precisam tomar medicações imunossupressoras para que o corpo não rejeite o novo órgão. Nesse processo, acaba abrindo a guarda para infecções.
Segundo o cardiologista Bruno Bisseli, do HCor, a principal precaução no primeiro ano é evitar grandes aglomerações e pessoas com quadros infecciosos, além de fazer uma monitoração de processos infecciosos.
Os transplantados têm alguma limitação física?
Bisseli afirma que os transplantados não têm restrição do ponto de vista físico e nenhuma limitação no trabalho. Ao contrário, o novo órgão melhora muito a capacidade funcional do paciente. É recomendado que ele faça um programa de reabilitação com atividade física. "Existe até a Olimpíada dos transplantados cardíacos, que vão competir de forma profissional de alta performance", afirma o cardiologista.
Quem paga o transplante de coração?
O Brasil tem o maior sistema público de transplante de órgãos do mundo, e o SUS é o responsável pelo custeio do procedimento. Os pacientes recebem assistência integral, equânime, universal e gratuita, incluindo exames preparatórios, cirurgia, acompanhamento e medicamentos pós-transplante, diz o Ministério da Saúde.
Planos de saúde cobrem o procedimento?
Quando o procedimento é realizado em hospitais privados, os planos de saúde cobrem toda a internação, antes, durante a avaliação e depois da cirurgia, mas o transplante é custeado pelo SUS. "A família não arca com nada em relação ao transplante cardíaco. O custo está relacionado ao tempo de espera do transplante. Quanto mais tempo internado, e se for na UTI, o valor se eleva", conta Bruno Bisseli, do HCor, destacando que o paciente só teria de arcar com os honorários médicos, mas que isso é negociado antes do procedimento.
Como a IA pode facilitar o transplante cardíaco?
Fernando Bacal, diretor da Unidade Clínica de Transplante Cardíaco do Incor (Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP), afirma que a Inteligência Artificial poderá auxiliar indicando os melhores trajetos para reduzir o tempo gasto no transporte dos órgãos. Também permitirá o maior cruzamento de informações para avaliação da compatibilidade e das chances de sucesso da cirurgia. Ainda está testando um sistema baseado em IA para detectar, por meio de eletrocardiogramas, o potencial risco de rejeição após o transplante cardíaco.
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