Pacientes que fazem tratamento com flores de Cannabis no Brasil para amenizar sintomas de doenças como câncer, epilepsia, mal de Parkinson, esclerose e fibromialgia estão numa corrida contra o tempo. Eles foram pegos de surpresa, em julho passado, pela nota técnica da Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa) que proibiu a importação de flores de maconha para fins medicinais e deu prazo de 60 dias para as últimas importações. A data limite de postagem de produtos importados ao país é o próximo dia 20, quarta-feira, o que gerou corre-corre de pacientes, uma avalanche de pedidos nas importadoras e ainda questionamentos na Justiça.
"Quando soube da notícia, tive uma crise de pânico", afirma o cenógrafo e DJ Fabrizio Pepe, 34, que tem de fibromialgia e, desde janeiro, faz uso de três tipos de flores de cânabis importadas da Califórnia e vaporizadas para o controle de dores e efeitos colaterais. "As flores são como um analgésico de efeito imediato, e também melhoraram meu sono, que era horrível por causa da rigidez muscular provocada pela dor", afirma, ressaltando que as flores têm zero ou baixíssima concentração de THC (tetrahidrocanabinol), responsável pelo efeito psicotrópico da planta Cannabis.
Quando suas últimas flores desembarcarem no país, seu prognóstico é retomar os medicamentos convencionais que havia abandonado. "É tudo o que eu não queria porque o remédio para dor leva ao remédio para a depressão e a outro para dormir", relata. Outros pacientes que usam flores vaporizadas agora temem ter que buscar alternativas de tratamento, seja nas prateleiras das farmácias ou no mercado ilegal de drogas.
Empresas e associações estimam que cerca de 5.000 pessoas façam uso medicinal de flores de maconha no Brasil, importadas por meio da resolução 660 (RDC 660) da Anvisa, de 2022. Não há dados oficiais.
A norma permite que pacientes cadastrados na agência importem produtos com THC e com CBD (canabidiol) mediante prescrição médica e a assinatura de termo de esclarecimento e responsabilidade sobre a ausência de segurança e de comprovação científica da eficácia dos produtos para tratamentos.
O argumento da falta de evidências, que vale para a quase todos os produtos derivados da Cannabis importados via RDC 660, foi apresentado pela Anvisa como uma das justificativas para o recente veto apenas à importação de flores. Para a agência, neste caso, há "alto potencial de desvio para fins ilícitos".
A agência tem respondido a ações na Justiça com registros de propagandas irregulares de flores de maconha, que é um produto controlado, e de promoções de empresas do setor que prometem "legalizar" o consumo de flores de maconha por meio da obtenção de receitas médicas.
Um caso emblemático foi o da empresa The Hemp Complex, que tem como um dos sócios o rapper Marcelo D2, ex-Planet Hemp, e que lançou em julho passado uma campanha cujo slogan era "Bora ficar legal". Poucos dias depois, a Anvisa publicou a nota proibindo a importação de flores. Kennedy Filho, CEO da Just Hemp, que comercializa óleos e cremes de cannabis e também importava flores para fins medicinais até a proibição, afirma que era sabido que algumas empresas praticavam irregularidades. "Mas é triste ver que, no lugar de criar regras e conter abusos, a Anvisa tenha adotado uma medida arbitrária que prejudica pacientes."
O neuropediatra Eduardo Faveret explica que a vaporização de flores de maconha é um complemento importante ao tratamento com óleos de cannabis, via oral, cujo efeito demora para ocorrer. "A vaporização é muito adequada como via de urgência, nos momentos de agudização de dores e ansiedades", afirma. "Em comparação com a administração via oral, a via inalatória gera níveis de três a cinco vezes maiores de concentração dos princípios ativos no sangue do paciente. A vantagem é a rapidez do efeito e sua duração mais curta."
Caroline Heinz, CEO e fundadora da Flowermed, que afirma atender a 2.600 pacientes na importação de flores, contesta os argumentos da Anvisa para a proibição. "A Anvisa não provou que houve desvio dos produtos nem que a forma vaporizada de administração da cannabis não tem evidência científica."
"Muitas empresas que investiram na comercialização de óleo em farmácias [permitida pela RDC 327 e que requer grandes investimentos] estavam incomodadas com o volume de vendas das empresas que trabalhavam com a importação de flores de cânabis", diz.
Não existem dados oficiais sobre o volume de importação de flores de maconha medicinal, cujas autorizações cresceram mais de 90 vezes em sete anos. Em 2015, primeiro ano da importação de produtos à base de maconha medicinal, a Anvisa autorizou 850 importações. Em 2022, foram 79.995.
A Anvisa não respondeu aos questionamentos da reportagem sobre eventuais pressões de empresas do setor de óleo de maconha. Em nota, a agência informou que o conceito de produto à base de Cannabis está regulamentado na RDC 327 e que a "normativa sanitária veda o uso sob a forma de droga vegetal ou suas partes". A nota não explica por que, então, flores eram importadas até julho passado.
Para o advogado Emílio Figueiredo, pioneiro no país no uso de habeas corpus para garantir o cultivo pessoal para uso medicinal, a decisão da Anvisa de proibir flores de cânabis "fortalece as empresas que vendem o produto na forma óleo e que vinham sentindo um crescimento abaixo do esperado por conta do sucesso das flores importadas".
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Em nota, a BRcann (Associação Brasileira das Indústrias de Canabinoides), que reúne empresas do setor dedicadas à produção de óleo para venda em farmácia, nega eventuais pressões na Anvisa e diz que apoia a decisão da agência por considerá-la "uma reação taxativa contra o uso indevido" da RDC 660.
A Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança (Abrace), primeira instituição do país a obter autorização judicial, em 2017, para cultivar maconha para fins medicinais, diz que vai recorrer aos tribunais mais uma vez, agora para poder oferecer flores aos seus associados. A proposta é limitar o fornecimento de flores somente para pacientes com câncer, epilepsias, doenças neuropáticas, Parkinson, Síndrome de Tourette e transtorno de ansiedade generalizada.
"Nossa missão é lutar para que os pacientes tenham acesso a tratamento, não importa se é flor, se é pomada, se é óleo. A dor não pode esperar", diz Cassiano Gomes, fundador e diretor-executivo da Abrace, que tem 40 mil associados.
Catarina Leal, 41, tem câncer metastático nos ossos e diz precisar da planta. "A quimioterapia dificulta a alimentação e a vaporização melhora o meu apetite."
"O óleo, além de demorar para fazer efeito, às vezes provoca efeitos gástricos indesejáveis. Eu não faço uso recreativo, é uma necessidade", afirma ela, para quem a negação do tratamento vai empurrar as pessoas para o mercado ilegal.
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