Ceramista Flávia Pircher

Após expor no Vaticano, em Buenos Aires e no Louvre, Flávia foi convidada para participar do segundo Festival de Cerâmica de Menemen, que tem seis milênios de tradição com cerâmica

Arquivo Pessoal


"Não questione por que ela precisa ser tão livre. Ela lhe falará que é o único modo para ser." Assim como na música "Ruby Tuesday" da banda britânica The Rolling Stones, Flávia Pircher, de 50 anos, trocou a rotina de processos advocatícios no Fórum e aulas para crianças em idade pré-escolar pela cerâmica, atividade que a acompanha há 19 anos, dando para Flávia não apenas uma libertação da sua rotina, mas também oportunidades de compartilhar essa arte milenar - levando-a a abrir seu próprio ateliê e a ser convidada para realizar um workshop neste mês na Turquia.

Na entrevista para o Bem Viver, Flávia conta com leveza como ocorreu a mudança em sua vida. Após um acidente em 2013, enquanto tentava aprender a técnica de cross country ski, na qual o esquiador desliza pela neve com os esquis paralelos, como numa caminhada, ela caiu e estirou (um rompimento parcial dos músculos) o tendão do polegar direito. Para se recuperar, a ceramista precisou ficar cerca de sete meses com a mão imobilizada para que o próprio corpo regenerasse a região. O repouso da mão levou à perda do tônus muscular, como Flávia conta: "Iniciei o tratamento com a fisioterapeuta, porque não conseguia levantar nem um copo, uma caneta ou abrir a maçaneta de uma porta."

"Como a rotina na área do Direito sugava minha energia, eu já tinha a cerâmica como hobby. Então tive a ideia de voltar a modelar no torno como uma forma terapêutica." A técnica citada, popularizada pela cena de Demi Moore e Patrick Swayze no filme "Ghost - Do outro lado da vida", exige pressão na massa de argila. "A gente usa partes da mão que nem sabia que existiam", conta Flávia, que após três meses começou a sentir avanço na recuperação, conseguindo fazer o movimento de pinça. Desde então, a cerâmica não saiu da rotina de Flávia. 
 
cena do filme ghost

A modelagem de cerâmicas no torno pode ser vista no filme 'Ghost - Do outro lado da vida'

Reprodução

Pandemia

Ela diz que está prestes a completar 10 anos desde que começou a dar aulas e relembra como foi o processo de ensino durante a pandemia, período em que suas alunas, a maioria mulheres com mais de 50 anos, praticavam cerâmica como hobby e única atividade social. "As aulas eram presenciais, e durante a pandemia, mudamos para a plataforma de reuniões Zoom." Flávia também relembra o contexto de lockdown: "Foi um período em que elas ficaram isoladas de suas famílias e atividades. Algumas começaram a desenvolver depressão. Então, comecei a dar aulas online, uma vez por semana. Todas as alunas tinham um celular, e isso funcionou muito bem."

Devido ao momento de insegurança e medo da incerteza, atividades manuais como costura, cerâmica e jardinagem tiveram uma alta procura durante a pandemia como uma válvula de escape. "Essas atividades são consideradas repetitivas e não cognitivas, permitindo que você se desconecte do mundo exterior, como uma forma de limpar a mente", explica Flávia. 



Então, houve um período em que o isolamento diminuiu, e as aulas presenciais voltaram ao normal, mas algumas alunas ainda se sentiam inseguras. Foi então que Flávia teve uma ideia: "Tudo bem, eu uso o canal do YouTube que utilizo para os trabalhos escolares dos meus filhos, gravo as aulas e coloco lá, e vocês assistem. Assim, cada uma pode assistir no seu tempo e horário. Foi assim que iniciei meu canal de YouTube para cerâmica." O que a especialista em artes visuais não imaginava é que além de suas alunas, mais pessoas estavam assistindo ao seu conteúdo. 

A descoberta só veio quando ela parou de publicar vídeos quando as aulas voltaram ao presencial. "Comecei a receber muitas mensagens de pessoas pedindo para eu continuar. Vários depoimentos emocionantes de pessoas de longe e de brasileiros que moram fora do Brasil." Os relatos eram comoventes e incentivou a continuação do canal."São vídeos simples, de 15 a 25 minutos, que ajudam as pessoas de maneiras que eu nem imaginava que ajudariam." Desde então, Flávia dedica algumas horas semanais para produzir conteúdo para o canal Cerâmica Em Casa, em conjunto com a página do Instagram - ambos com vídeos didáticos com material técnico e relacionados à cerâmica como hobby.

Terapêutico

“Eu adoro dar aula. É uma coisa que me realiza”. Com a habilidade de ensinar, Flávia também utiliza a técnica de observação, principalmente no que concerne  perceber a relação entre a cerâmica e os seus alunos, e no que tange a cobrança e a percepção do outro. Ela explica que ao iniciar às aulas, os alunos procuram pela perfeição e se sentem aflitos quando uma peça sai do forno diferente do que eles imaginavam. “No começo, a pessoa tem apego a peça que não deu certo; a peça trincou, rachou e ele [o aluno] não desmancha a peça e fica com aquilo”, explica Flávia, em que orienta os iniciantes de que aquilo é só barro. “Depois eles vão se desapegando. É um aprendizado sobre querer controlar tudo, quando na verdade a gente não controla nada.” 
 
Uma mão escupindo uma peça de argila

Uma mão escupindo uma peça de argila

Arquivo Pessoal


Ainda sim, a turma é bem variada sobre o apego. A ceramista conta que há alunos que ficam alisando a peça e cortando até ficar perfeita: “A pessoa fica quatro dias em um copo só”. Há também, “o que fizer está bom”, o qual não se estressa com o resultado. Na ponta, está o aluno exigente consigo mesmo e com a peça. “Para ele nada está bom, nada está perfeito. Nesse caso, a pessoa fica lutando com ela mesmo.”

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Com esse ambiente tão diverso, ela destaca a importância das aulas serem em grupo, pois é visualizando o comportamento do outro, que a pessoa consegue entender o objetivo da cerâmica, de expressar os sentimentos, que não necessariamente precisam ser perfeitos. Além disso, ele consegue observar que não é só ele que se sente insatisfeito. 

Oportunidades

Após expor no Vaticano, em Buenos Aires e no Louvre, Flávia foi convidada para participar do segundo Festival de Cerâmica de Menemen, que tem seis milênios de tradição com cerâmica. A artista explica que a cada ano o festival escolhe um tema, em 2023, é de ninhos. Para a ocasião, ela preparou uma peça em formato de ninho. Ela está na Turquia desde o dia cinco de setembro, e passará 10 dias dando workshops com várias técnicas diferentes, como raku e sagar. 
 
Cerâmica de barro no formato de ninho

Cerâmica de barro no formato de ninho

Arquivo Pessoal
 
 
Diante de tantas mudanças e sucesso, Flávia conta descontraidamente como algumas pessoas acham toda essa realidade chique. Ela ressalta que a própria cerâmica não deixa que ela esqueça de onde ela veio. “É um trabalho simples, que exige dedicação e empenho. As oportunidades estão acontecendo em função de um trabalho duro e dedicado. Se essa dedicação acabar e eu viver só de glamour, vai acabar tudo isso também”.

Ela complementa dizendo que é muito fácil o ser humano se achar o dono do mundo e esquecer o quão falível é. “Eu fiquei praticamente um ano com a mão mobilizada e quase perdi praticamente o movimento. Estamos sujeitos a situações que fogem totalmente do nosso controle. Por isso, viva o aqui e o agora. O mundo nos convida, cada vez mais, a fazer várias coisas ao mesmo tempo. Então se dedique ao momento presente.” 
 
*Estagiária com supervisão do subeditor Diogo Finelli.