Uma imagem segue emoldurada na lembrança de Edina de Aguiar Malta, a Dininha, há mais de meio século: aquele início de tarde de domingo, julho de 1968, o gol, a vitória e aquela pequena garota, magrinha e de cabelo curto, mas valente nas quatro linhas, carregada nos ombros pelas companheiras no gramado desgastado do campo do Independente, em Vespasiano. A euforia sucedia à vitória do Vespasiano, time de Dininha, sobre o Oficina: uma rivalidade que se criou na cidade, à época com 7 mil habitantes, mas que poucos meses depois foi sufocada pelo decreto-lei que proibia as mulheres de jogar futebol de forma competitiva.
“Eu tenho uma vontade de ter idade para jogar....”, se emociona Dininha, hoje com 62 anos, que há 14 sobreviveu a um AVC hemorrágico. “Eu vejo a Marta jogando, eu jogava bola demais, tanto que eu saio na rua e o pessoal até hoje lembra, por que você parou?”, conta Dininha, que, em 1968, tinha 12 anos recém-completados.
A história do futebol em Vespasiano durou pouco, mas o suficiente para marcar a vida de um grupo de 30 garotas que se reuniram para arrecadar fundos para uma escola e tomaram gosto pelo futebol. “O objetivo principal foi filantrópico: ajudar a escola Padre José Senabre. O muro tinha caído, necessitava reformar e estávamos procurando o que fazer: baile, bazar e fomos fazer o futebol feminino”, conta Iolanda Maria Braga Viana, hoje com 74 anos, à época uma professora recém-formada.
A ideia foi bem aceita, mas faltava um detalhe: as jogadoras. Iolanda e uma amiga saíram pela Avenida Dr. Ari Teixeira, uma das principais da cidade, e ao final da rua já haviam anotado o nome de 30 meninas interessadas, todas entre 12 e 20 anos. Dois times e ainda reservas! Coube ao folclórico Zé Fubá, um tipo conhecido de toda a cidade, dar instruções aos dois times e apitar as partidas. Um dos uniformes foi cedido pelo Vespasiano Esporte Clube. O Independente, que tinha um campo bem-estruturado, com bilheteria, cedeu o espaço. O outro uniforme foi cedido por uma oficina mecânica da cidade – por isso o nome Oficina.
“A rivalidade era dentro de campo, depois comemorava, vibrava, mas na hora de vestir a camisa, fervia. Foi tudo na base do oba-oba. Já tinha algumas que jogavam com os irmãos, mas com técnica mesmo, eram cinco ou seis, como a Clarice, irmã de Buião”, conta Iolanda.
João Bosco dos Santos, o Buião, é um dos filhos ilustres de Vespasiano. O atacante chegou ao Atlético entre 1964 e 1968, quando foi vendido ao Corinthians, em uma das negociações mais caras da época. Passou por outros grandes clubes do futebol brasileiro, como Flamengo, Grêmio e Atlético-PR, antes de se aposentar, em 1981. Em julho de 1968, coube a ele dar o pontapé inicial de um dos confrontos entre o Vespasiano e o Oficina
“Não se falava jamais (em futebol para as mulheres), um preconceito grande, até hoje ainda tem. Mulher jogando futebol ninguém aceitava, os pais eram muito sistemáticos. Aí montaram o time. Eu estava no Corinthians e, coincidentemente, fiquei sabendo do jogo. A Clarice e a Dora, minhas irmãs, jogaram. Infelizmente, já faleceram”, lembra Buião, hoje dono de uma empresa de ônibus na cidade.
O SUCESSO E O FIM
Não demorou para que a rivalidade entre Vespasiano e Oficina chamasse a atenção. “Vespasiano tem hoje uma grande atração turística. É a única cidade do Brasil onde se pratica o futebol feminino, mesmo com a proibição da CND”, destacava o Estado de Minas de domingo, 28 de julho de 1968, lembrando do decreto do Conselho Nacional dos Desportos (CND).
“No Brasil, o CND proibiu as mulheres de jogar futebol. Agora Vespasiano tem a primazia de ter as duas únicas equipes de futebol do país em atividade”, dizia o EM, anunciando o segundo duelo entre Vespasiano e Oficina uma semana depois do primeiro, que foi um sucesso de público. “Esse campo ficou lotado, de tanta gente. A renda foi excelente”, lembra Dininha. “O dia do jogo foi emocionante, a expectativa da hora de jogar. Os pais aceitavam bem, apesar da época”, conta Iolanda.
Chegaram os convites para jogar em Pedro Leopoldo e até um para Ribeirão Preto. Mas a exposição acabou chamando a atenção das autoridades. “Foram surgindo as proibições. A gente foi chamada para ser avisada de que não poderíamos continuar jogando, que era proibido o futebol para mulheres. Aí foi diminuindo...”, lembra Iolanda.
Meio século depois, elas sabem que contribuíram para a história do futebol feminino no país. “Nós ajudamos a plantar a semente. Quando vejo a Marta brilhando, eu falo: olha lá Vespasiano. A história do futebol de mulheres é muito bonita. A mulher tem direito a tudo, inclusive a se valorizar.”
LIBERAÇÃO SÓ EM 1983
O artigo 54 do Decreto-lei 3.1999, de abril de 1941, que previa a vedação da prática, por mulheres, de desportos “incompatíveis com sua natureza”, veio na esteira de times femininos que começavam a excursionar pelo país, como os cariocas Casino Realengo e Brasileiro. Em 1965, uma deliberação do CND estabelecia como práticas não permitidas às mulheres “lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, polo aquático, polo, rugby, halterofilismo e baseball”.
Demoraram ainda longos anos até que as mulheres pudessem jogar futebol de forma competitiva no Brasil. Em 1979, houve a revogação da deliberação do CND. “A prática oficializada do futebol por mulheres ainda dependeu da deliberação publicada pelo CND, em 1983, com o estabelecimento de regras para a modalidade feminina no país”, afirma o historiador Raphael Rajão.