Em campo, os negros terão papel de destaque no Campeonato Brasileiro, que começa neste fim de semana. Dedé, do Cruzeiro, Gabigol, do Flamengo, Rodrygo, promessa do Santos pela qual o Real Madrid desembolsou R$ 193 milhões pela contratação, e Jean Pyerre, do Grêmio, são alguns que desfilarão futebol de primeira nos gramados brasileiros, a partir de sábado, na disputa da Série A. Entretanto, nas áreas de comando do futebol dos 20 times da Primeira Divisão, negros são exceção.
Levantamento do Estado de Minas/Superesportes mostra que apenas três entre 100 dirigentes e treinadores da Série A são negros: o técnico Roger Machado, do Bahia, o diretor do Grêmio, Deco Nascimento, e o assessor de futebol do Palmeiras, Zé Roberto. A investigação levou em conta os cargos de presidente, vice de futebol, diretor, gerente, executivo, coordenador, supervisor e técnico (inclusive os interinos) dos 20 clubes da elite do futebol brasileiro.
Precisar quem é negro ou não, especialmente num ambiente de miscigenação da população nacional, muitas vezes vai além de aspectos físicos, mas considera também a autoidentificação. A pesquisa, porém, não localizou relatos em que os outros 97% tenham se declarado negros.
O professor Bruno Otávio de Lacerda Abrahão, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), diz que essa ausência é um reflexo do “racismo à brasileira”. “É uma especificidade do modo como o Brasil desenvolveu uma forma particular de racismo. Esse racismo prima pela existência de dois polos, da inclusão e da exclusão, essa ambiguidade. E o futebol revela isso”, diz.
Se hoje enfrenta dificuldade em ascender a cargos de liderança, o negro sofreu a rejeição da elite do futebol nos primórdios do esporte no Brasil. A cor da pele e a condição social eram decisivas na aceitação dos jogadores, sendo raras as exceções. Mesmo com a inserção nos gramados, o negro ainda era excluído de ambientes sociais, como as festas aristocráticas nas sedes dos clubes no início do século XX.
“O lugar do negro sempre foi restrito.
O racismo era tão ‘naturalizado’ no futebol que ecoava entre os próprios negros. O jornalista Mario Filho, na obra clássica O Negro no Futebol Brasileiro, relata uma conversa que ouviu de um jogador do Fluminense. “Eu já fui preto e sei o que é isso”, disse Róbson, em frase depreciativa aos negros, como ele próprio. O escritor analisou esse período no livro: “Realmente os pretos do futebol procuraram, à medida que ascendiam, ser menos negros. Esquecendo-se de não se lembrar, mesmo em alguns casos, que eram pretos.
Atualmente, o racismo está presente no futebol de diversas formas, das mais explícitas, como os gritos de macaco dos torcedores do Grêmio contra o goleiro Aranha, em 2014, até os modos mais discretos, como o ocorrido com o ex-jogador Tinga, que começou a carreira na gestão de futebol no Cruzeiro, em 2016. Em pouco tempo no cargo, Tinga ganhou a admiração de atletas e torcedores. Os frutos do trabalho foram colhidos em 2017: a Raposa conquistou a Copa do Brasil. No fim daquele ano, o dirigente preferiu se desligar do clube após as eleições presidenciais.
Antes desse sucesso fora das quatro linhas, Tinga recebeu convite para trabalhar em uma equipe da elite do futebol brasileiro. Em uma conversa com um dirigente, o racismo velado apareceu supostamente em tom de brincadeira. “Antes de o Cruzeiro me convidar, outro clube da Primeira Divisão me chamou para assumir um cargo de direção. Durante as conversas, um dirigente, que não vou revelar o nome, me pediu para cortar o cabelo. Eu tenho cabelo grande, com dread. Respondi, em tom de brincadeira, ‘você quer o meu cabelo ou o meu serviço?’. Acabei não indo trabalhar neste clube”.
Tinga demonstra incômodo com os poucos negros em cargos de comando do futebol brasileiro.
A culpa também é do negro?
Um dos poucos neste ambiente administrativo dos clubes, Deco Nascimento conseguiu crescer no Grêmio mesmo não tendo no currículo o passado como jogador.
“A ausência de negros em cargos de gestão no futebol passa pela falta de formação e capacitação, antes da discriminação. À medida que os negros se capacitarem com excelência para estes cargos, certamente aumentará bastante a ocupação neste nicho de mercado”, diz Deco.
Fora do mercado, o ex-jogador Andrade evita colocar a culpa no racismo. O mineiro de Juiz de Fora fez carreira como atleta de sucesso no Flamengo, clube do qual é um dos maiores ídolos. Quando se aposentou, começou a treinar o CFZ (Clube de Futebol Zico). Depois, voltou ao Flamengo para trabalhar na base. Em 2009, assumiu o comando do clube após demissão de Cuca e ajudou o clube a vencer o Campeonato Brasileiro daquele ano.
Em abril de 2010, Andrade foi demitido pelo Flamengo. Desde então, nunca recebeu convite de um grande clube. Passou por equipes menores, como Brasiliense, Paysandu e Boavista. Ele culpa os empresários pela falta de oportunidade. “Hoje, está tudo nas mãos dos agentes. São eles que colocam os treinadores nos grandes clubes. Eu não tenho um empresário. Por isso, não tive essa oportunidade”, disse.
Andrade acredita que parte da responsabilidade por não ter negros em cargos de comando é do próprio negro. “Parte dessa culpa é da gente (negro), por não ter se preparado para isso. Se um negro se preparar, se tem convicção naquilo, ele consegue. Assim como há muitos treinadores negros desempregados, também há brancos”, frisou.
A visão de Andrade é rechaçada por grande parte da academia. Marcel Diego Tonini, doutor em história social pela USP (Universidade de São Paulo), diz que este tipo de ideologia tenta culpar o negro pelo racismo.“Duas das características mais notáveis do racismo à brasileira são exatamente a negação deste fenômeno e a introjeção das ideologias raciais do branco. Ambas acarretam tanto o enfraquecimento da identidade negra quanto a falta de consciência social do negro”, diz Tonini, que analisa o racismo no futebol.
“Quanto mais subimos a estrutura do futebol espetacularizado, mais racista ele se torna, maior a resistência por parte da elite branca que o controla e compõe o status quo. Se nós formos perguntar aos dirigentes esportivos, eles dirão que é pela falta de competência dos próprios negros, numa atitude tipicamente racista de culpar os negros por seu insucesso. A elite racista inventou até um nome para isto: ‘complexo de cor’. Esse discurso supostamente meritocrático, no entanto, não dá conta de explicar por que os negros compõem a maioria dos atletas profissionais, porém, não têm chances em cargos de gestão, sendo que estes são compostos em boa parte por ex-atletas”.
Como mudar essa realidade?
Assim como os clubes, a CBF tampouco abre espaço para o negro. Em suas 13 diretorias (desenvolvimento do futebol, assessoria legislativa, coordenação, competições, comunicações, projetos estratégicos, relações institucionais, financeira, governança, marketing, patrimônio, registro e transferência e tecnologia da informação) não há um negro.
Nos Estados Unidos, o esporte mais popular do país, o futebol americano, conta com uma legislação que obriga os clubes a incluírem minorias (negros, latinos e mulheres) nos processos de contratações de técnicos e coordenadores.
A política da liga de futebol americano foi seguida pela Federação Inglesa de Futebol (FA). A entidade anunciou no ano passado que vai entrevistar pelo menos um candidato negro, asiático ou de minoria étnica quando precisar escolher o sucessor do atual técnico da Seleção da Inglaterra, Gareth Southgate, que tem contrato até 2020.
Marcelo Carvalho, idealizador do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, diz que o movimento de lutas pela igualdade racial no Brasil ainda é insuficiente se comparado ao que acontece nos Estados Unidos.
Carvalho demonstra lamentação ao refletir sobre a falta de ações com o objetivo de mudar essa realidade. “Entramos numa onda de se duvidar do poder nefasto do racismo. Continuamos sem ações dos clubes e das entidades esportivas (CBF, TJD, STJD, Federações). No máximo, temos ações pontuais em datas específicas. Mas vale salientar a bravura do Bahia em falar de racismo e outros preconceitos no esporte sem medo de os torcedores não gostarem deste posicionamento”, afirmou.