Oliveira – Fotografias, carrinhos, medalhas, troféus, bolas de futebol, camisas, brinquedos... As inúmeras lembranças num quarto recheado de saudade revelam as facetas de um jovem alegre, querido pelos amigos, sonhador e com futuro promissor, como tantos outros espalhados pelo Brasil. Apesar de ter uma vida toda pela frente, o destino de Pablo Henrique, então com 14 anos, foi interrompido numa tragédia que comoveu o país há quase um ano. Mineiro de Oliveira, na Região Centro-Oeste do estado, o então zagueiro foi uma das vítimas do incêndio que matou 10 garotos das divisões de base do Flamengo, em 8 de fevereiro do ano passado. A família tenta se recuperar do duro baque emocional da tragédia e trava uma batalha na Justiça contra o clube carioca na busca pelos direitos e pela indenização pedida pelo Ministério Público do Rio de Janeiro.
O incêndio foi provocado por curto-circuito em um dos aparelhos de ar-condicionado dos seis contêineres interligados dentro do espaço provisório onde o Flamengo alojava os meninos da base. O local não tinha alvará da prefeitura e nem do Corpo de Bombeiros, já que o clube carioca afirmou que, na área em questão, seria construído um estacionamento.No momento do acidente, dormiam pelo menos 30 jovens entre 14 e 17 anos – além dos mortos, três ficaram gravemente feridos.
Pablo Henrique tinha DNA ligado ao esporte. Seu pai, o motorista Wedson Cândido Matos, de 54 anos, jogou futebol amador. Pablo também era primo em primeiro grau dos zagueiros Werley, que joga no Vasco, e Nathan, atualmente no Coritiba. Ele começou a jogar bola no Social, clube amador de Oliveira, e chegou ao Flamengo em agosto do ano passado, depois de breve passagem pelo Atlético.
O crescimento no rubro-negro foi rápido. Tanto que olheiros do Barcelona já o observaram nos jogos da base, projetando uma transferência para a Espanha no futuro.
A família de Pablo vive numa casa alugada em Oliveira. Segundo os pais, o sonho do garoto desde cedo era proporcionar uma vida mais tranquila a todos, a começar por uma residência própria e de luxo. “Ele queria tudo do bom e do me- lhor. E nós sonhávamos com ele brilhando. Queria comprar uma casa igual à da tia Nina, mãe do Werley e do Nathan. Eu brincava que não queria, porque tenho desgaste no joelho e não aguentaria subir e descer escadas o dia inteiro. E ele, sorrindo, brincava que colocaria um elevador para que pudesse ir ao segundo andar”, lembra a mãe, Sara Cristina, de 49, que, além do filho, perdeu a mãe no fim do ano passado.
Insônia e remédios A perda repentina do garoto mudou a rotina da família. Wedson tem dificuldades para trabalhar e voltar à rotina. “Hoje, tomo remédios para depressão, pressão, colesterol e também para dormir. Tem quase um ano que eu não sei o que é dormir bem. Entregamos ele para o Flamengo tomar conta. Ele sempre dizia que tudo estava bem. Depois, foi entregue dentro de um caixão fechado”, afirma o pai.
Sara também disse que perdeu o gosto pelo futebol: “Não me sento para assistir aos jogos. Nem voltei lá no Social, onde ele começou. Eu me desiludi. Adorava o Flamengo, sua torcida linda... Eu torcia para o Flamengo, mas depois que o Pablo se foi, isso tudo acabou”.
Pablo deixou também a irmã mais velha, Pâmela Cristina, de 25, e os sobrinhos Manoela, de 3, e Lorenzo, de 1. “Minha filha, meus netos dão força. Até hoje não aceito ficar sem o Pablo. Não era isso que eu queria. Já pensei que quem deveria morrer poderia ser eu. Hoje não tenho mais sonhos. Ele realizou o que desejava? Não”, diz Sara.
A mãe do jogador recorda como se fosse hoje o dia do incêndio. Poucos dias antes, houve o rompimento da barragem do Córrego do Feijão, em Brumadinho, outra tragédia que comoveu o país. “Acordei cedo, mas nem quis ver televisão, porque estava muito triste com o que aconteceu em Brumadinho. Fui lavar roupa. Depois, a casa começou a encher de gente querendo saber notícia do Pablo. Eu apostava que ele não estaria no meio e sairia vivo. Mas tomei um choque. Deus me contou que partiu”, conta.
Férias em Oliveira
Poucos dias antes de morrer, Pablo esteve em Oliveira para passar as festas de fim de ano e curtir as férias. Encontrou-se com a namorada, Maria Luísa, de 14 anos, e gostava de reunir os amigos em casa para jogar videogame ou mesmo fazer um churrasco na rua. “Ter passado esse fim de ano sem ele foi algo muito difícil, pois ele era sempre presente quando estava na casa dos pais dele. Sempre nos mandou mensagem quando estava fora. É muito duro”, afirma Iann Venâncio, de 16 anos, amigo de infância.
Com os primeiros vencimentos que recebia no Flamengo – o teto para a categoria era de R$ 800 –, o garoto queria reformar uma Brasília que herdou do avô para circular pela cidade quando viesse de férias. Os sonhos de carreira do zagueiro eram jogar no Maracanã lotado pelo Flamengo e chegar à Seleção Brasileira de base.
A vontade da família era de que Pablo repetisse os passos de Werley e Nathan e jogasse no Atlético, algo que não deu certo em virtude da falta de ajuda de custos. “O Luisinho, treinador e preparador físico, levou o Pablo para o Flamengo. Depois de dois meses em teste, perceberam que ele estava no nível ou acima dos demais. De um grupo de 17 jogadores, só ele permaneceu. Foi subindo degraus e chegou ao Sub-15 do Flamengo. Chegou a ser capitão da equipe”, conta Wedson.
Em processo em curso na 1ª Vara Cível da Barra da Tijuca, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro acatou pedido feito pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro e determinou que o Flamengo pague pensão de R$ 10 mil a cada uma das famílias dos 10 jovens mortos. É com esses recursos que os pais de Pablo tentarão sobrevi- ver. Mas eles reclamam que a diretoria do rubro-negro teve pouco diálogo desde a tragédia. “Recebi apenas um telefonema e nada mais”, questiona Wedson.
Dor, revolta e disputa judicial
O Flamengo vem tratando a tragédia do Ninho do Urubu de maneira individual com as famílias das vítimas. O clube anunciou ter feito acordo com parentes dos atacantes Vitor Isaías, Athila Paixão e Gedson Santos, além do pai do volante Rykelmo Viana. As demais famílias seguem negociando na busca por valores mais satisfatórios das indenizações que possam aliviar o sofrimento que carregam desde janeiro do ano passado.
A advogada dos pais de Pablo, Mariju Maciel, afirma que o último contato do Flamengo foi há cinco meses, quando foi feita uma proposta pelo clube. O valor inicial seria de R$ 400 mil para cada família e um salário mínimo por mês durante 10 anos. A oferta da diretoria não foi aceita por nenhuma família. Com o tempo, porém, os próprios pais dos demais atletas procuraram o Flamengo e aceitaram as propostas, de valores distintos.
“Aquelas famílias que conseguiram algo foi por desespero emocional ou financeiro. Ninguém disse que estava satisfeito. As famílias já não aguentavam mais falar no assunto, até porque ficou uma carga muito pesada. Todas precisavam virar a página para não enlouquecer”, afirma Mariju.
Com a determinação do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o clube teve de dobrar a pensão mensal – o valor inicialmente pago pelo clube foi de R$ 5 mil. A família de Pablo já recebeu duas parcelas do clube carioca. O descumprimento está sujeito à multa diária de R$ 1 mil para cada caso, a ser paga pelo rubro-negro, que já recorreu da decisão.
De acordo com o vice-presidente jurídico do Flamengo, Rodrigo Dunshee, a proposta do clube foi satisfatória e atenderia bem à necessidade dos familiares das vítimas: “Desde o acidente, o Flamengo começou a pagar R$ 5 mil para cada família, para que elas pudessem ter tranquilidade e negociar um acordo sem emergência. Chegamos a um valor que achamos ser muito acima dos precedentes da Justiça brasileira”.
O imbróglio judicial ocorre num momento em que o clube se reestruturou financeiramente, com ganhos que chegaram a R$ 800 milhões em 2020. Somente neste ano, a diretoria desembolsará em torno de R$ 160 milhões com as contratações de Leo Pereira, Thiago Maia e Michael, além da aquisição em definitivo de Gabriel.
Para Wedson Matos, o sentimento é de revolta. “Se a diretoria me perguntasse o que eu gostaria, não queria nada de valor. Diria que queria meu filho de volta. Não tenho raiva do Flamengo e nem de sua torcida, mas os garotos não tinham valor nenhum para o clube”.
O Flamengo pode ser responsabilizado pelo MP pelas mortes. O inquérito foi devolvido em dezembro à Polícia Civil para que novas apurações sejam feitas. Nesse caso, até mesmo a CBF, que emitiu certificado de clube formador de atletas de base do futebol, será interrogada. No Ninho do Urubu, o clube alega ter feito obras e construção de alojamentos com mais comodidade para evitar novas tragédias. Recentemente, o clube dispensou cinco dos 16 sobreviventes, alegando ser necessário uma reformulação na equipe.