Jornal Estado de Minas

ADEUS A MARADONA

Maradona é drama, luta, resistência: é um tango argentino



Morreu Diego Armando Maradona. Os campeonatos deviam parar. 90 minutos de silêncio não bastam. O Maradona morreu, embora Maradona não morra. Devia parar a Argentina, e ela vai parar, devia parar o Brasil e a América Latina, Napoli e a Itália, Havana, Cuba, o mundo devia parar. Morreu o Maradona, morreu um tempo, morreu uma ideia. Deviam cessar todas as injustiças sociais, deviam parar todas as favelas e guetos, todos os desvalidos, todos os que sofrem a dor dos outros como se fosse a sua. Maradona morreu.





Como vamos agora viver sem Maradona? Sim, porque Maradona nos autorizava a sermos completamente errados e imperfeitos, e ainda assim sermos justos, coerentes e corretos, e que apesar de todos os pesares, de todos os equívocos, estamos a salvo quando do lado certo da história. Um mundo sem Maradona, sem exagero, é um mundo sem Mandela, sem Gandhi, sem Che, seu ídolo tatuado no braço, assim como Fidel morava em sua panturrilha.

A partir de hoje, desconfio, não restará mais a dúvida besta sobre quem foi maior, se Maradona ou Pelé – a passagem do primeiro, tido como segundo, dirá sobre sua grandeza para além do futebol. E tudo o que havia (e para sempre haverá) de simbólico na sua identidade de latino-americano pleno de uma necessária revolta e altivez da qual prescindimos, orgulhoso de sua origem pobre, indignado com o que verdadeiramente deveria nos indignar a todos. Maradona é, de certa forma, o que deveríamos e poderíamos ser, ainda que bêbados e drogados.

Pelé foi o genial jogador de futebol. Ofereceu a Bolsonaro, no Dia da Consciência Negra, uma camisa autografada. Calado, um poeta, observou Romário. Maradona foi o genial jogador de futebol acrescido da personificação da luta de seu povo contra as injustiças, algo que foi se tornando maior do que ele próprio – e que hoje, morto, o coloca à altura de Guevara, Peron e Evita (e Gardel) para qualquer argentino. Esperem para ver o que será seu funeral.





O roteirista de seu destino não poupou o público da mistura das duas coisas, o futebol e a transcendência. Contra a Inglaterra, em 1986, fez o gol que é considerado o mais bonito da história das Copas. Não bastasse, desclassificou os ingleses com o gol de mão mais famoso de todos os tempos, nomeado por ele La Mano de Diós, porque justa, sem dúvida. Aquilo não foi uma partida de futebol em que um jogador acabou o jogo – aquilo foi Maradona vingando a morte de 649 argentinos na Guerra das Malvinas quatro anos antes. Não há inglês que não trocasse a maldita ilha por sorte melhor naquele revés que lavou a alma de todo o mundo. Gracias, Diego.

Com o perdão pelo clubismo nessa hora grave, Maradona tem uma certa cara de Atlético – injustiçado, roubado, perseguido, eliminado, fodido, quantas vezes acabado. Tudo em sua história é drama, é tango argentino, e, no entanto, é resistência e luta – e por isso eu gostava de dizer que a Argentina era o Galo do futebol mundial. Maradona é, de certa forma, Reinaldo, com a força de seu punho cerrado e a fragilidade que conduziu ambos às drogas. Um admirava o outro. Maradona é maior do que Pelé – é do tamanho do Rei.

Agora Maradona está morto. E quando morre Maradona, parece morrer tanta coisa na gente. Vejo Maradona correndo enlouquecido para a câmera de tevê depois daquele gol na Copa de 1994. Depois o vejo, no final do jogo, sendo conduzido pela enfermeira para o exame antidoping. Penso comigo como pensam todos os argentinos: mataram o Maradona. E então me ocorre o Che: “Os poderosos podem matar uma, duas, três rosas, mas jamais conseguirão deter a primavera”. Gracias, amigo, sua morte me dói profundamente.

audima