Da concepção, em 2013, à finalização, o longa “Lutar, Lutar, Lutar – O filme do Galo” teve desvios caprichosamente preparados pelo destino. Foram oito anos de pesquisas, entrevistas, filmagens, edição, incertezas e muita persistência para que a película chegasse a 20 salas de cinemas do Brasil na semana passada. Estratégia mais perfeita de marketing não haveria para encher as sessões: time voando em campo, dando passos firmes para a conquista do título brasileiro e na final da Copa do Brasil, além da torcida em êxtase, lotando o Mineirão, mediante a regressão da pandemia de COVID-19. Mas esse timing nem de longe foi programado. Foi um afago do acaso no coração e na alma dos diretores, Helvécio Marins e Sérgio Borges, atleticanos fanáticos, que tiveram de tirar dinheiro do próprio bolso para bancar a empreitada.
Se em 2013, ou mesmo depois, alguém tivesse falado com Helvécio Marins que o filme seria lançado nesse contexto, o que ele imaginaria? “Nunca ia acreditar. Talvez se tivéssemos planejado não daria tão certo”, diz. Ao falar do filme, o experiente diretor se alterna entre o orgulho do efeito que tem provocado em quem o assiste e o alívio, por ver o trabalho pronto. A dificuldade em fazer cinema no Brasil tem uma grande parcela nessa mescla de sentimentos.
A ideia de produzir um filme sobre o Atlético nasceu antes, em 2010, de um projeto de Sérgio Borges, que originalmente retrataria as crianças que moram na Cidade do Galo em busca do sonho de vencer no futebol. Esbarrou justamente na falta de recursos. Até que veio a conquista da Copa Libertadores pelo Atlético, em 2013, e o desejo de Helvécio e Sérgio de levar o Galo para a telona foi ao encontro da vontade do então presidente alvinegro, Alexandre Kalil, de documentar a épica campanha no torneio continental. Quinze dias depois da finalíssima contra o Olimpia-PAR, no Mineirão, em uma reunião, a semente foi lançada, e extrapolou a epopeia da Libertadores.
“Começamos o filme sem saber quando seria o ponto final. Não sabíamos nem se teríamos dinheiro para fazer. Resolvemos filmar na cara e na coragem. Fizemos R$ 250 mil de dívidas, tiramos do bolso”, comenta Helvécio Marins. “A gente queria lançar o mais rápido possível após o título da Copa do Brasil, em 2014. Mas foi muito difícil. E depois veio a pandemia. Se não lançássemos neste ano, teríamos de devolver o pouco de dinheiro que recebemos da Ancine e do Ministério da Cultura. Tomaríamos uma multa gravíssima. Aí a sorte começou a virar um pouco”.
O que ele chama de sorte talvez seja um enlace bem-sucedido dos deuses do futebol e do cinema. O cenário para o lançamento não poderia ser mais apropriado, com a providencial liberação de público nos cinemas. E eles precisam muito que o filme caia no gosto da Massa. “Este é um filme de dois malucos, eu e o Sérgio. Qualquer diretor/produtor teria abandonado o projeto, porque a gente nunca teve mais do que 55%, no máximo 60% do orçamento”, comenta Helvécio, revelando que a única fonte para retorno financeiro dele e de Sérgio virá dos cinemas. Até dezembro (pelo menos em BH), o filme estará em cartaz. Depois que sair, os direitos de exibição ficarão com a Disney, que o levará para o serviço de streaming e veiculará em rede nacional (duas vezes), no canal ESPN.
Foi no peito e na raça, como a torcida atleticana costuma descrever jornadas do time. E são eles, os torcedores, os grandes protagonistas do filme, do início ao fim, com uma narrativa amparada pela emoção e guiada pela conexão inviolável com a equipe, mesmo nos momentos de maior decepção – que também são relatados.
É a visão de torcedores do Galo sobre (e para) torcedores do Galo. Inclusive a narração é de uma torcedora, Carol Leandro, responsável pelo grand finale da obra.
Mas é também um registro histórico, com os costumes de cada época, uma cronologia do ser atleticano que inclui a forte presença feminina quebrando padrões desde os primeiros capítulos, com Alice Neves, feminista na acepção da palavra décadas antes de o termo ser cunhado. “Há apenas 10 anos de diferença entre a fundação de Belo Horizonte e a fundação do Atlético. As coisas se fundem. Muito da formação antropológica da cidade tem a ver com o Atlético, o clube contribuiu imensamente para tecer esse contexto social. O Galo abraçava todo mundo” destaca o diretor.
Ele diz se sentir também representado por cada torcedor que surge na tela: “Estudei em colégio particular a vida inteira, fui criado a seis quarteirões do Mineirão e foi o Atlético que me tirou da minha redoma social. Aos domingos, eu ia com o meu pai ao campo. Mas às quartas-feiras eu ia com o Rogério, um menino que morava na minha rua, num puxadinho do CB Merci (um supermercado), lavava os carros das madames e era um louco atleticano como eu. Era a maior alegria do mundo estar com o Rogério e os amigos dele no Mineirão. Eu podia comer sanduíche de pernil com alface, meu pai sempre mandava tirar a alface; aprendi a beber cerveja, tomei meu primeiro porre de cachaça. Não havia nada mais gostoso do que o abraço de um gol, eles me jogavam para cima. Eu me lembro no ar, gritando Galo”, recorda-se, saudosista – Rogério morreu no início dos anos 1990 e é uma das pessoas a quem Helvécio gostaria de dedicar o filme.
FLAMENGO
Construir esse mosaico deu trabalho, pela necessidade de condensar mais de 100 anos de história e pontuar ídolos e momentos em quase duas horas de filme. Aproximadamente 80 pessoas foram entrevistadas, entre jogadores e ex-jogadores, dirigentes, torcedores famosos e anônimos, jornalistas, treinadores... Desses, apenas 30 estão no longa, que garante depoimentos emocionantes como o de Toninho Cerezo (e aqui vai um spoiler: ele foi às lágrimas) e Dario, além de relatos históricos, como o de Vavá, que integrou o time campeão do Gelo, e o narrador símbolo do Galo, Willy Gonser, que morreu em agosto de 2017.“Fomos muito cuidadosos para que tudo que fosse primordial para a história do Atlético estivesse no filme, que é muito fiel a ela. Para dar conta de tudo, teria de ser 20 séries, com 1.553 capítulos cada uma... (risos). A gente enumera os principais momentos, e a escolha veio um pouco com o que a gente queria mostrar, mas muito também dos depoimentos. Às vezes, sem saber eles fizeram essa costura”, afirma Helvécio.
Escolher o quê mostrar foi outro desafio. E coube aos duelos com o Flamengo parte importante, com uma das contribuições do destino, aponta o diretor. “Em 1987 (Copa União), foi duro, eu estava no Mineirão, chorei demais. Mas foi na bola. Já em 1980 e 1981 (as polêmicas partidas por Brasileiro e Libertadores) não foi na bola. E tem um peso grande. Coisas do acaso, a gente foi encontrar esse time na semifinal da Copa do Brasil e deu aquela lavada de 4 a 1, na semifinal. Acho que fiquei mais feliz naquele dia do que na final da Libertadores. Foi como se tirasse um encosto”, relembra, sem citar o nome do Flamengo.
Uma das poucas filmagens de jogos feitas pela própria equipe foi justamente a da goleada por 4 a 1, pela Copa do Brasil de 2014. “Marcamos a filmagem com muita antecedência. um ano, seis meses antes. Nem sabíamos o quê íamos filmar. Só que seria em novembro. E calhou de cair na semifinal e na final da Copa do Brasil. Sorte, né?” disse, acrescentando: “É porque era pra ser. E foi esse bálsamo, esse presente”.
Quem sair da sessão de cinema emocionado e quiser ver uma parte II, com o desfecho de 2021, terá de contar mais uma vez com o acaso. Helvécio afirma não estar nos planos uma continuidade de “Lutar, Lutar, Lutar”. “Eu posso estar falando besteira... Mas esse filme foi tão difícil, tão trabalhoso, que já estou satisfeito”, sentencia. Que ninguém duvide, no entanto, de uma nova dobradinha entre os deuses do futebol e do cinema para trabalhar nisso aí.
Personagens da notícia
Equipe experiente e premiada
Os filmes de Helvécio Marins, produtor e diretor do filme, receberam mais de 60 prêmios nos mais importantes festivais internacionais e brasileiros, como Veneza, Berlim, Toronto, Roterdã, Tóquio e MoMa NY. “Girimunho”, seu primeiro longa-metragem, recebeu o Interfilm no 68º Festival de Veneza, em 2011. “Querência”, seu segundo longa, conta com produção de Walter Salles e foi lançado mundialmente no 69º Festival de Berlim, em 2019. Já o diretor e produtor Sérgio Borges teve filmes exibidos e premiados em festivais nacionais e internacionais como Roterdã, Marselha, Leipzig, Lisboa, São Paulo e Tiradentes. O “Céu sobre os ombros”, seu primeiro longa, venceu o 43º Festival de Brasília, de 2010, contemplado nas categorias melhor filme, direção, roteiro, montagem e prêmio especial. Já Fred Melo Paiva, produtor e roteirista do filme, é colunista do Estado de Minas e foi indicado ao Emmy, em 2014, pela série “O Infiltrado”, do History Channel, da qual era apresentador e roteirista.