Jornal Estado de Minas

Lastro dos navios ameaça a biodiversidade marinha dos oceanos

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Usada para garantir a estabilidade dos navios durante as viagens, a água do mar, chamada de lastro, é vetor de uma das quatro maiores ameaças aos oceanos: a bioinvasão. Capaz de causar impactos ambientais, econômicos e à saúde pública, a proliferação de espécies aquáticas começa nos tanques dos navios, especialmente naqueles de carga.

Antes de zarpar, a embarcação vazia é carregada com água do mar como forma de aumentar seu peso e garantir que uma maior parte do casco fique submerso. Com isso, são asseguradas condições mínimas de estabilidade, governo e manobra. Quando captada nos portos, a água salobra, rica em vida marinha, carrega consigo centenas de micro-organismos como bactérias, vírus, cistos, mexilhões e peixes para os tanques de lastro dos navios.

O Instituto Água de Lastro Brasil estima que cerca de 5 bilhões de toneladas de água de lastro sejam transportados anualmente em todo o mundo e que cada navio seja capaz de carregar mais de 3 mil tipos de espécies diferentes numa única viagem. Diante de condições extremas, muitas delas sequer chegam a sobreviver ao percurso, enquanto outras dão sequência ao ciclo de vida mesmo em ambiente inóspito. No destino final, os tanques são esvaziados e a água capturada a quilômetros de distância é eliminada. Em um novo habitat, as espécies passam por mais uma barreira de sobrevivência, o que não impede que algumas ainda resistam e coloquem em risco a fauna nativa, causando uma série de prejuízos à comunidade daquele local.

"No Maranhão, a população sofre com a invasão do siri Charybdis hellerii vindo dos oceanos Índico e Pacífico. Mais agressivo, ele está substituindo a espécie local, mas não tem valor comercial algum", explica o pesquisador do Departamento de Engenharia Naval da Universidade de São Paulo (USP) e presidente do Instituto Água de Lastro Brasil , Newton Narciso Pereira. "Muitos pescadores estão perdendo emprego e sua fonte de renda", acrescenta. Segundo a Marinha do Brasil, o siri também já chegou à Baía de Todos os Santos, em Salvador, e às baías de Sepetiba e Guanabara, no Rio de Janeiro.

Outro relato está relacionado ao último surto de cólera ocorrido no Brasil na década de 1990 que foi disseminado na Argentina, seguindo para a Bacia do Prata e, posteriormente, para os portos de Paranaguá (PR) e Santos (SP), dando fortes indícios de sua associação à água de lastro.

COMBATE

Para evitar novas contaminações, algumas alternativas já foram criadas. Entre elas, o tratamento químico da água por meio da aplicação de cloro. No entanto, Narciso Pereira explica que a opção foi proibida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), uma vez que a mistura de água do mar com os restos dos organismos em decomposição gera como substrato o ácido trihalometano, considerado cancerígeno. "O sistema físico de combate usa, por exemplo, radiação ultravioleta, assim como para tratar esgoto. O problema é que a eficiência é de, em média, 85%", observa. Nesses casos, as espécies maiores acabam sobrevivendo. "Não chegamos a uma alternativa 100% eficaz", lamenta o pesquisador.

Apesar disso, há uma solução bem próxima à ideal. A legislação brasileira que regulamenta o setor prevê que a água de lastro seja trocada a 200 milhas da costa. Com isto, as espécies capturadas na água salobra do porto têm poucas chances de sobrevivência em um ambiente de água mais salgada. "Na costa, a salinidade é de 32 partes por milhão, enquanto em oceano aberto passa a ser de 35 a 37 partes por milhão", explica Pereira.

O inverso também ocorre. Os micro-organismos que habitam em alto mar, capturados durante o processo de troca da água, quando despejados no porto de destino também não encontrarão cenário propício ao crescimento. Apesar da eficácia, os altos custos e o risco da operação são uma barreira a essa alternativa. "A troca é feita com o navio em movimento, o que compromete sua estabilidade", explica Newton. Um navio de grande porte tem capacidade para transportar 60 mil metros cúbicos de água, o equivalente a 60 mil caixas d’água. "Vai gastar energia, combustível e expor a embarcação a um certo risco", acrescenta.

SEM MULTAS

Segundo o comandante da Marinha, Edgar Barbosa, "os navios que escalam em portos ou terminais brasileiros estão sujeitos à inspeção naval com a finalidade de determinar se estão em conformidade com a Norma da Autoridade Marítima para o Gerenciamento da Água de Lastro de Navios (Normam-20)." A punição para aqueles que não cumprem a legislação pode variar entre R$ 5 mil e R$ 50 milhões. "Os valores serão determinados em função da gravidade da infração, coerentes com as demais penalidades empregadas na navegação internacional", acrescenta o comandante. Apesar do rigor da norma, não há registros de multas este ano.

Daqui para o futuro
Para aumentar o rigor da fiscalização sobre os navios que atracam nos portos brasileiros, a ONG Água de Lastro, juntamente com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), está desenvolvendo um equipamento para monitorar as embarcações. "São sensores com localização GPS que estarão em teste no fim deste ano", explica o pesquisador do Departamento de Engenharia Naval da USP, Newton Narciso Pereira. A intenção é que o aparelho identifique exatamente as coordenadas geográficas em que foi realizada a troca da água de lastro dos tanques. "Saberemos quando os tanques foram ligados para realizar este processo, assim como o tempo que durou a operação", acrescenta. O objetivo é garantir que a legislação está sendo cumprida, e o meio ambiente, preservado.

Enquanto isso … Cemig combate praga
Apesar de nenhuma usina controlada pela Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) ter sido alvo do molusco mexilhão dourado, espécie de origem asiática que chegou às águas brasileiras por meio de navios transoceânicos , a concessionária trabalha desde 2004 para combater a praga. Problema para as usinas hidrelétricas, o mexilhão se instalada nos encanamentos e ali crescem e se multiplicam. O resultado é a obstrução da passagem de água com o consequente superaquecimento do maquinário, podendo acarretar até a interrupção no abastecimento de energia. Atualmente, registros do molusco originário da China já foram feitos a 20 quilômetros da Usina de São Simão, controlada pela Cemig, na divisa de Minas com Goiás. Para se antecipar à instalação iminente, a empresa, juntamente com a Fundação Centro Tecnológico de Minas Gerais (Cetec), vai investir R$ 6,3 milhões em pesquisa e desenvolvimento nos próximos quatro anos. "Vamos tentar entender essa forma de dispersão, criando um mapa colaborativo que inicialmente atenda Minas Gerais e o restante do Brasil e posteriormente a América Latina", explica a bióloga e analista de meio ambiente da Cemig, Helen Regina Mota.