Jornal Estado de Minas

EUA criam fígado artificial semelhante ao humano

Americanos desenvolvem artificialmente órgão semelhante ao dos humanos para implantá-lo em ratos. Objetivo é tornar testes de medicamentos em animais mais eficientes

Gláucia Chaves

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Para cada doença que surge, milhares de pesquisas são necessárias até que se determine qual combinação de substâncias químicas será capaz de combatê-la. Um longo processo é percorrido para que a fórmula saia do laboratório e chegue às prateleiras das farmácias. No meio do caminho, os cientistas realizam os chamados ensaios clínicos – bateria de testes que servem para comprovar a segurança e a qualidade dos remédios, bem como acompanhar seus efeitos nos pacientes depois do lançamento. Um resultado inesperado em algum desses experimentos pode fazer um estudo de anos voltar à estaca zero. Para diminuir os riscos de fracasso na elaboração dos tratamentos, cientistas americanos desenvolveram um fígado artificial, compatível ao humano, a ser implantado em ratos usados no experimento. A ideia é prever com mais segurança – ainda durante os testes com animais – como a droga afetará as pessoas.

Antes de ser testada em humanos, uma droga precisa ser experimentada em animais. São feitos quantos ensaios forem necessários, em bichos de pequeno e médio porte, até que se tenha absoluta certeza da segurança do medicamento. Só então a fórmula é testada em um organismo humano saudável, em que os voluntários podem ou não apresentar efeitos colaterais. A última etapa consiste em ministrar os remédios em pessoas que sofrem do problema a ser combatido e observar os resultados.

Contudo, o sucesso dos testes em animais não significa, necessariamente, que a droga terá efeitos positivos em humanos, uma vez que não há como comparar dois organismos tão diferentes. É aí que entra o fígado artificial, desenvolvido por pesquisadores da Universidade de Harvard. A escolha desse órgão específico para ser sintetizado, por meio da engenharia de tecidos, deve-se ao fato de ele ser o responsável por metabolizar e sintetizar inúmeras substâncias, entre ela, medicamentos. Depois de implantá-lo nos ratos, os estudiosos descobriram que o fígado de laboratório não só imita a atividade molecular do tecido humano como produz interações e lesões exclusivas do órgão natural. É como se os testes fossem realizados em um rato com fígado humano, misturando duas etapas de ensaios que costumam ocorrer de forma separada.

Os resultados da pesquisa foram publicados na revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences. Uma das autoras do estudo, Luvena Ong, pesquisadora do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), ligado à Harvard, explica que para a ciência a importância da criação de órgãos artificiais se dá não só pela possibilidade de produzir e substituir órgãos danificados, mas também para entender os processos celulares e moleculares que estão por trás das funções deles. “Esses modelos artificiais nos permitem sondar essas funções de uma maneira inatingível pelos modelos celulares, orgânicos e de animais”, diz, em entrevista ao Estado de Minas.

Comparados a outros métodos existentes para testar medicamentos, Luvena comenta que o protótipo feito pelos estudiosos de Harvard se diferencia pela facilidade de criação. “A maioria dos outros modelos de fígado humanizado requer técnicas complicadas e especializadas para se desenvolver”, explica. “A segunda vantagem é que nosso modelo demonstra de forma mais precisa o metabolismo humano específico da droga para outros sistemas.”

Método necessário
Formas alternativas à utilização de animais para testar novas drogas são objetos de pesquisa há tempos. Porém, segundo José Luis Miranda Maldonado, assessor técnico do Conselho Federal de Farmácia (CFF), por enquanto não há como considerar a possibilidade de parar a realização de testes em animais. “Precisamos deles para analisar a farmacocinética (o caminho que os medicamentos fazem pelo organismo) e a farmacodinâmica (como agem no corpo) dos remédios, para fazer as adaptações que forem necessárias”, justifica. O que existe, segundo o farmacêutico, são correntes de cientistas que propõem modelos biológicos diferentes – como a utilização de órgãos artificiais. “Mas é interessante deixar claro que o fígado não faz tudo, há outros órgãos envolvidos”, frisa. “Os modelos biológicos determinam alguns alvos, mas não dizem o que o medicamento faz no corpo todo.”

Para Carlos Alberto Tagliati, professor de toxicologia da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em um cenário médico ideal animais não seriam usados de maneira alguma durante os testes. Contudo, enquanto esse dia não chega, o que se pode fazer é investir na substituição de exemplares vivos por outros que já estariam mortos. “Antes, a indústria de cosméticos usava coelhos vivos para ver se o produto irritava os olhos”, exemplifica. “Em vez disso, os pesquisadores podem usar olhos de bois recém-abatidos.” Também sócio-fundador da In Vitro Cells, empresa de base tecnológica que realiza testes de segurança (toxicidade) in vitro, Tagliati frisa que, além de minimizar o sofrimento dos bichos, os modelos alternativos diminuem o tempo total de análise – uma vez que não é preciso fazer repetidos experimentos até que se obtenha sucesso. “A indústria farmacêutica investe nisso porque colocar um medicamento no mercado demora de 12 a 15 anos”, completa. “Ao diminuir o tempo de análise, eles diminuem também o valor que gastam com o medicamento.”

Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Bioética da Universidade de Brasília (UnB), Volnei Garrafa considera a polêmica acerca do uso de animais em experimentos uma questão ideológica. “Já existem porcos e macacos com rins, fígados e outros órgãos como os dos humanos”, reforça. Segundo ele, a posição brasileira sobre o assunto é de que a ciência e a busca por conhecimento devem ser livres. Porém, uma vez definida a aplicação prática das descobertas, essas devem ser mediadas por leis específicas. Esse é o papel dos comitês de ética animal, que determinam os critérios que devem ser seguidos pelos pesquisadores e até mesmo o número de cobaias que podem ser usadas em cada experimento. “Depois da talidomida (droga que causou o nascimento de várias crianças com malformação nos anos 1950), todo novo remédio precisa ser testado em três mamíferos antes de chegar ao homem. Isso se chama biossegurança, não há como escapar disso.” (GC)