Ao fechar os olhos, dentro de casa, você será capaz de se movimentar com alguma facilidade pelos cômodos, localizando portas, móveis e janelas. O cérebro cria uma representação mental do espaço, permitindo a locomoção relativamente bem-sucedida, embora feita sem o auxílio da visão. É justamente esse o princípio de um aplicativo para computador que está em fase final de desenvolvimento por professores mineiros e auxiliará deficientes visuais a se orientarem de maneira independente e eficaz por qualquer lugar do mundo. Seu funcionamento tem como base a sintetização sonora de dados dos programas Google Earth e Google Maps e estará disponível para download grátis em breve.
Batizado de GE Falador (iniciais de “graphic engine”), o aplicativo é resultado de tese “Modelo de interpretação e representação da informação espacial: uma visão alternativa em ambiente web GIS”, defendida em 2008 no Programa de Pós-graduação em Tratamento da Informação Espacial da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) pelo engenheiro Marcelo Franco Porto. Professor da disciplina projeto e computação gráfica para os cursos de engenharia da Universidade Federal de São João del-Rei, ele contou com a orientação de João Francisco de Abreu, doutor pela Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, e professor de geografia da PUC.
O usuário poderá baixar gratuitamente o aplicativo e usá-lo em qualquer computador. Detalhe: com mouse e não teclado. Ao mover o cursor sobre o mapa de um país ou pelas ruas de uma cidade, por exemplo, o deficiente visual ouve diferentes sinais sonoros, cada um com um significado diferente. Pode ser um bipe para informar a altura de um terreno, uma voz informando as coordenadas e distância entre o usuário e o destino escolhido ou mesmo o som de água para informar a proximidade do mar. “O que existe de mais próximo a isso não é tão adequado. A proposta é ter toda a informação do Google Earth e Google Maps à disposição. É o mundo inteiro”, diz Marcelo.
Na prática, cada movimento feito com o mouse é analisado pelo aplicativo, que vai ‘ler’ todas essas ações e, a partir disso, ‘devolve’ ao usuário referências que contemplam três categorias principais de relações espaciais essenciais à compreensão do espaço por meio da cartografia: topológica (percepção do espaço próximo), projetiva (localização de elementos fixos de acordo com o referencial do observador) e euclidiana (localização de objetos por meio de coordenadas, envolvendo matemáticos e cartográficos, por exemplo). A cartografia digital via internet leva vantagem em relação à cartografia tátil (baseada em alto relevo, sistema de leitura braile etc) por priorizar a acessibilidade e a comunicação de maneira atualizada.
“Poderíamos ter usado sistemas mais sofisticados, como luvas especiais, mas preferimos algo que universalizasse o aplicativo. Nesse projeto, trabalhamos muito com a percepção via mouse e com a audição, que tem poder espacializante. O grande objetivo é permitir que, ao usar o aplicativo, o deficiente visual monte um mapa mental para auxiliá-lo na rua, quando não terá computador à mão. Isso lhe dará autonomia. É mais que inclusão digital, é inserção social. A ideia é que o aplicativo seja de uso público, sem interesse financeiro”, observa o engenheiro Marcelo Porto. Ele adianta que já estão em curso adaptações do GE Falador para serem usadas em tablets, telefones celulares e outros dispositivos móveis.
Inspiração e testes
Um dos fatores que motivaram o desenvolvimento do GE Falador foi o trabalho de um colega australiano, Reginald Golledge, professor de geografia da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, que morreu em 2009. Quando ficou cego, Golledge passou a pesquisar apenas sobre mapas cognitivos e percepção especial para deficientes visuais. Ele foi professor de João Francisco e, a partir desse contato, a ideia surgiu. Os testes começaram há cerca de dois anos no Núcleo de Apoio à Inclusão do Aluno com Necessidades Educacionais Especiais da PUC Minas, envolvendo bolsistas dos cursos de computação e geografia da entidade.
A segunda fase de testes, ano passado, foi realizada com alunos e professores do ensino fundamental do Instituto São Rafael, que atende deficientes visuais em Belo Horizonte. Encontros semanais ajudaram a equipe a desenvolver melhor o aplicativo que, aprimorado, foi testado pelos alunos na fase final. “Ouvir um daqueles estudantes dizer que achou a casa dele ou perguntar onde fica a Europa, porque quer visitá-la, é emocionante”, conta Marcelo. Ele acrescenta que o GE Falador pode ser usado também no ensino de crianças com visão normal e até no de quem nunca enxergou: “O aprendizado de crianças que chegaram a enxergar um pouco é mais difícil que o de quem ficou cego quando adulto. No entanto, elas aprendem rápido. O cego de nascença é o mais difícil, mas não impossível. Só requer mais treinamento”, acrescenta.
Por fim, uma prova de que os professores mineiros estão no caminho certo. Depois de fazerem “passeios” pelos mapas digitais (ouvindo todas sinais sonoros), os alunos que testaram o aplicativo foram solicitados a criar, com o mouse, uma imagem do que foi visitado sem qualquer tipo de referência. Sobrepostas, as duas imagens eram muito semelhantes.
Personagem da notícia
Reginald Golledge - pesquisador já falecido
Geografia mental
Reginald Golledge nasceu em 1937 na Austrália e iniciou lá e na Nova Zelândia sua carreira acadêmica. Em meados dos anos 1960, foi para os Estados Unidos, onde atuou nas universidades de Iowa, Ohio e Califórnia. Sua maior contribuição foi por meio de pesquisas que demonstraram como as pessoas desenvolvem mapas mentais baseados nas informações espaciais que adquirem ao longo da vida. “Geografia a gente carrega na mente”, disse o professor numa entrevista à revista Nature. Foi um dos pioneiros da corrente behaviorista da geografia, baseada em fatores como processos cognitivos e compreensão espacial. Em 1984, ficou cego por conta de doença degenerativa do nervo óptico e, assim, seus estudos ganharam grande importância pessoal. No ano seguinte, colaborou em projeto do professor Jack Loomis, que consistia num sistema de navegação para deficientes visuais tendo como base a tecnologia GPS. Ele morreu em 2009.