Siso e apêndice parecem ter uma só função: inflamar e serem extraídos. Considerados vestígios da evolução por Charles Darwin, alguns órgãos no homem são como marcas de um passado muito remoto e hoje não têm mais utilidade alguma. Ou alguém sabe explicar para que serve o cóccix, aquele ossinho em formato de minicauda localizado na ponta da coluna vertebral? Se agora não faz sentido, ele já teve uma importância muito grande aos ancestrais do Homo sapiens, que, como bons primatas, precisavam de um rabo para se equilibrar em cima das árvores.
Durante muito tempo, foram chamados de órgãos vestigiais esses rastros da evolução que, até hoje, acompanham não só o homem, mas diversas outras espécies de animais e mesmo vegetais. O termo está em desuso e começam a aparecer evidências de que alguns deles, na verdade, ainda são funcionais, como o apêndice, que, além de inflamar, serve como depósito de bactérias boas para o organismo. A descoberta de que alguns órgãos que pareciam obsoletos possuem utilidade tem sido usada por criacionistas para renegar o darwinismo e refutar a teoria de que o homem é da mesma família dos macacos. “As coisas não são tão simples assim”, alerta Gerd B. Müller, biólogo teórico responsável pelo verbete “órgãos vestigiais” na Enciclopédia da evolução, organizada por Mark Pagel e publicada pela Universidade de Oxford.
“Em primeiro lugar, você não depende da existência de órgãos vestigiais para dar sustentação à teoria da evolução das espécies. Em segundo, embora algumas pessoas pensem que os mecanismos evolutivos desses órgãos já foram completamente elucidados, isso está errado, pois ainda há muito o que estudar a respeito”, alega. Segundo Müller, que é professor da Universidade de Viena, uma possível explicação para o fato de estruturas ancestrais persistirem no homem moderno com alguma utilidade é que os órgãos foram aproveitados pelo organismo e ganharam outras funções ao longo do tempo. “A evolução não pode ser vista de maneira simplista. Quando uma estrutura é parte muito importante de um organismo, ela está interligada a outros órgãos, tecidos etc. Simplesmente removê-la poderia causar danos secundários graves”, explica.
Nenhuma parte do corpo pode ser considerada completamente inútil, alega Müller, lembrando que, se não serve mais para determinada função, ela pode se adaptar e ganhar novas tarefas dentro do organismo. “Uma última explicação para a manutenção de órgãos vestigiais está relacionada à genética. O genoma é uma estrutura intrincada e nós possuímos genes que estão inativos há milhares de anos, mas, ainda assim, estão presentes nas cadeias de DNA. Conexões genéticas podem ser responsáveis por mantermos esses vestígios ainda hoje”, diz.
Sobrevivência
Um dos órgãos que pareciam sem utilidade, mas que, com o passar do tempo, se mostraram funcionais, é o apêndice, uma pequena bolsa localizada entre os intestinos grosso e delgado. Pouco se sabia sobre ele além do fato de que, ao inflamar, tem de ser extraído sob risco de infecção generalizada. Até que uma equipe da Universidade de Duke descobriu sua utilidade. Na infância, o apêndice produz células de defesa importantes para lutar contra micro-organismos invasores. Sua principal função, porém, é a de produzir e armazenar bactérias que ajudam na digestão.
William Parker, professor de cirurgia experimental e um dos autores do estudo divulgado em 2007, conta que os intestinos são povoados por diferentes micróbios que ajudam o sistema digestivo a quebrar as moléculas de alimento. Quando a flora intestinal é prejudicada por alguma infecção — uma doença como o cólera, por exemplo —, o apêndice fabrica os micro-organismos para repor as baixas. Milhares de anos atrás, as condições de vida dos homens modernos eram extremamente adversas. Não há evidências de que eles se preocupassem muito com hábitos de higiene. Pelo contrário, estudos em fósseis já mostraram que prosaicas infecções de dente, por exemplo, eram letais. Vulnerabilidade a doenças infecciosas fazia com que a expectativa de vida no Paleolítico fosse de 30 anos. Ao tomar o leite materno, um bebê podia correr risco de morte. Nessa época, o apêndice era, portanto, fundamental à sobrevivência.
“Podemos concluir que o apêndice é um órgão que mantém ainda hoje sua função original, mas que não é tão exigido, pois, a não ser em países com baixíssimos índices de desenvolvimento humano, dificilmente alguém morre hoje de uma diarreia”, constata Parker. “É por isso que, embora realmente tenha utilidade, sua remoção não traz efeitos negativos. Em sociedades modernas com práticas regulares de higiene e sanitarismo, não é indispensável um reservatório de ‘bactérias do bem’. Caso alguém precise dele, porém, o apêndice está lá.”
Células-tronco
Se o apêndice continua a exercer sua função original, os dentes de siso são um exemplo de estrutura que perdeu completamente sua vocação. Andando sobre quatro patas, cerca de 100 milhões de anos atrás, o ancestral do homem moderno exibia uma mandíbula larga e forte porque, naquele momento, seus dentes tinham uma importância vital. Para um quadrúpede, caçar e desmembrar a presa dependia unicamente da dentição. Sem dente, sem comida. Um terceiro molar, além de se acomodar bem dentro da boca, ao contrário do que ocorre hoje, quando às vezes nem sequer desponta na gengiva, funcionava como uma garantia extra aos primatas. Se, por acidente, o primeiro e o segundo molar se perdessem, havia o siso para proporcionar a mastigação.
Ao ficar bípede, o homem passou a usar os braços na caça e no preparo da comida. O cérebro cresceu, mas a mandíbula diminuiu, deixando pouco espaço para o “dente do juízo”. Além disso, o domínio de ferramentas e, principalmente, do fogo tornou os alimentos mais fáceis de serem processados antes de digeridos. Não era mais preciso um terceiro molar para destroçar a presa. O cozimento deixou a comida mais fácil de ser mastigada. O siso, portanto, perdeu a função original, embora continue a se formar, algo que começa a mudar: cerca de 35% dos humanos já nascem, hoje, sem vestígios desse dente.
O terceiro molar, porém, pode não ser tão inútil. Mesmo que sua extração seja necessária para evitar dor e inflamações — e também porque quase ninguém tem espaço para ele —, quem consegue acomodá-lo perfeitamente na mandíbula não está perdendo nada. Pelo contrário, está ganhando um depósito de células-tronco. Segundo um estudo publicado no Journal of Biological Chemistry, o siso contém um reservatório de tecidos que podem originar essas estruturas. A polpa do dente contém uma população de células parecidas às encontradas na medula óssea. “A vantagem é que é mais fácil extrair células-tronco do dente”, diz Hajime Ohgushi, do Instituto Nacional de Ciências Industriais Avançadas do Japão e um dos autores da pesquisa. “Muito precisa ser feito e estudos mais aprofundados são necessários para saber a viabilidade de uma aplicação clínica das células do terceiro molar. Não deixa de ser interessante, porém, saber que carregamos, dentro da boca, um depósito de células-tronco”, observa.