As mesmas células que dão esperança de cura para diversas doenças debilitantes estão por trás de um dos piores inimigos do organismo: o câncer. Três estudos diferentes publicados hoje nas revistas científicas Nature e Science indicam que as células-tronco, aquelas com capacidade de autorrenovação indefinida, podem se tornar malignas, originando cópias doentes incessantemente mesmo depois de o paciente ser submetido a quimio ou radioterapia. De acordo com os cientistas que fizeram as pesquisas, a esperança é de que, a partir da descoberta, novos tratamentos que evitem o ressurgimento do tumor sejam desenvolvidos.
A chamada hipótese das células-tronco adultas tem sido debatida há pelo menos 20 anos na oncologia, mas, até agora, não havia sido comprovada em modelos vivos, apenas nas lâminas dos laboratórios. Os novos experimentos, contudo, foram realizados em ratos, nos quais o tumor cresceu naturalmente, permitindo que os cientistas acompanhassem seu desenvolvimento desde o estágio inicial.
Em pessoas saudáveis, as células-tronco adultas se dividem incessantemente e podem se transformar em qualquer tipo de estrutura daquele tecido. No processo de divisão, elas dão origem a uma célula com propriedades idênticas, originando uma rede interminável de produção celular. Ainda não se sabe quando e por que isso ocorre, mas no caso do câncer, em algum momento essas células-tronco começam a se multiplicar, provavelmente devido a mutações genéticas, fazendo crescer um tumor. “Independentemente da origem dessa célula, ela tem propriedades idênticas às das células-tronco adultas normais. O que as difere do tecido sadio é a falta de mecanismos que regula a divisão. Então, elas se renovam em uma quantidade muito maior do que deveriam”, explica Brenton Thomas Tan, patologista da Universidade de Stanford que não participou de nenhum dos três estudos publicados hoje.
De acordo com Tan, muito do que se sabe sobre a biologia dessas células vem de experimentos realizados com células-tronco hematopoiéticas, aquelas que dão origem às estruturas do sangue, como plaquetas e hemoglobinas. Quando a divisão ultrapassa o limite normal, uma consequência é a leucemia. Agora, as pesquisas divulgadas pela Nature e pela Science estudam o fenômeno em tumores sólidos, como o câncer de cérebro. “Os gliomas são os tipos de câncer com pior prognóstico para os pacientes, principalmente um chamado de glioblastoma, que é o tipo de tumor cerebral mais frequente. O prognóstico é de menos de 12 meses e tem sido o mesmo nos últimos 30 anos, por isso precisamos estudar outras formas de combatê-lo”, observa Luis Parada, pesquisador do Southwester Medical Center e autor do artigo publicado na Nature.
Novas terapias
Segundo Parada, as terapias atuais têm como alvo as células que formam a massa tumoral, mas não levam em conta aquelas responsáveis por seu surgimento. A equipe do médico desenvolveu geneticamente ratos com glioblastomas e descobriu que a base do câncer estava não nas células doentes, mas nas células-tronco que, ao se dividirem, davam origem a elas. Mesmo quando o tratamento conseguia reduzir o tumor a um tamanho ínfimo, as células-tronco continuavam lá, prontas para formarem novas massas. “Esse é um campo controverso, mas, se aprofundarmos nossos estudos sobre essas linhagens de células, poderemos encontrar novas terapias para essa doença incurável”, acredita.
No outro artigo publicado na revista Nature, cientistas liderados por Cédric Blanpain, da Universidade Livre de Bruxelas, também constataram, em ratos, a ação das células-tronco cancerígenas. Nesse caso, os animais foram manipulados para desenvolver câncer de pele. Com biomarcadores, eles acompanharam o desenvolvimento das células do tumor, ao longo de sua progressão. “Surpreendentemente, descobrimos que a maioria das células tinha um potencial limitado de proliferação, enquanto uma pequena fração exibia a capacidade de persistir, produzindo mais da metade do tumor”, disseram, no artigo.
No caso dos adenomas intestinais, que precedem o câncer de intestino, o pesquisador Hugo Snippert, do Centro Médico da Universidade de Utrecht, na Holanda, descobriu que as células mais perigosas respondem por 5% a 15% do volume tumoral. Elas seguem um padrão semelhante ao observado por Parada e Blanpain. Snippert, principal autor do estudo publicado na Science, conta que, embora menos numerosas, são elas as responsáveis por fazer o câncer crescer.
“Isso as torna um importante alvo para novas terapias”, observa. “De fato, não são todos os médicos que concordam com a hipótese de células-tronco cancerígenas. Mas os estudos anteriores ou não eram em organismos vivos ou eram realizados a partir de transplantes de tecidos cancerígenos. O que temos agora são mamíferos que desenvolveram o câncer a partir das próprias células, reproduzindo bem o que ocorre em um paciente humano. Acredito que temos, então, fortes elementos para intensificar essa linha de pesquisa, com a esperança de conseguirmos avanços no nível clínico”, afirma.