Quentin Atkinson, psicólogo e pesquisador de antropologia evolutiva da Universidade de Auckland, na Nova Zelândia, pegou emprestada uma metodologia usada por médicos para investigar a origem de epidemias. Baseada nas características do DNA de um vírus, como o da gripe, a filogenia determina de onde surgiu o micro-organismo e como se espalhou. “Mas, em vez de um vírus, comparamos idiomas, e, no lugar do DNA, fomos atrás de cognatos”, explica o cientista. Cognatos são palavras de diferentes idiomas com som e/ou grafia semelhantes e que significam a mesma coisa, independentemente da língua. Um exemplo é o vocábulo água. Em inglês, diz-se water; em alemão, wasser. No idioma morto hitita, que existiu até cerca de 1 mil a.C. na Anatólia, falava-se watar.
A equipe de Atkinson compilou uma base de dados de cognatos existentes em 103 línguas indo-europeias, incluindo 20 já extintas, e 207 significados. Essas informações foram cruzadas em um modelo computacional de filogenia, para traçar a origem e o padrão de disseminação dos idiomas. “As linguagens evoluem ao longo do tempo de uma maneira similar às espécies biológicas. À medida que os grupos falantes se dispersam, o discurso toma forma própria, originando idiomas descendentes ou novas famílias. Até hoje, calculamos que já existiram 6 mil línguas no mundo”, conta Remco Bouckaert, pesquisador do Departamento de Ciências Computacionais da Universidade de Auckland, que participou do estudo.
De acordo com ele, a filogenia pode ser imaginada como uma árvore, cujo tronco se ramificará, gerando galhos e folhas com diferentes níveis de relação, ainda que a raiz seja a mesma. “No caso de uma família, por exemplo, o tronco são os avós, os galhos são os pais e tios; e as folhas são os filhos, sobrinhos e primos”, compara. Ele explica que, da mesma forma, esse modelo aplica-se à linguagem. “Português e espanhol são idiomas irmãos, que têm um ancestral comum bastante recente. O francês é um primo dos outros dois, que se dividiu deles há bem mais tempo. Já o romeno é um parente mais distante. O inglês está mais longe ainda. Mesmo assim, o tronco é um só.”
Com esse modelo de investigação, os pesquisadores confirmaram a hipótese de que o idioma protoindo-europeu nasceu onde hoje é a Turquia e foi se espalhando por uma área que se estende pelo que hoje é a Islândia, chegando até o Sri Lanka. As relações com a revolução agrícola são muitas. Primeiro, quando o homem se fixou no campo e desenvolveu tecnologias de plantio, coleta e armazenamento, houve um aumento na oferta de alimentos, o que permitiu uma explosão populacional. Além disso, grupos fixos e organizados estimularam o contato entre sociedades em desenvolvimento e, consequentemente, as trocas culturais. Como um vírus, a linguagem originada na Anatólia foi se espalhando e adquirindo contornos próprios em cada lugar aonde chegava.
A hipótese defendida por Quentin Atkinson contesta outra teoria sobre a origem e o padrão de disseminação da linguagem indo-europeia. Na década de 1950, a arqueóloga lituana Marija Gimbutas apresentou a ideia de que uma forma primitiva do idioma teria surgido nas estepes pôntico-caspianas, que se estendem do Mar Negro ao Mar Cáspio, 6 mil anos atrás.
O local era habitado por pastores seminômades chamados kurgans, que dominavam cavalos selvagens e, graças a esse poder de locomoção, tornaram-se guerreiros e teriam se expandido pela Europa e pela Ásia, levando com eles a linguagem protoindo-europeia. A tese de Marija ganhou a simpatia de muitos arqueólogos, incluindo David W. Anthony, antropólogo da Hartwick College, de Nova York, e autor do livro The horse, the wheel and language: how bronze-age riders from the eurasian steppes shaped the modern world (O cavalo, a roda e a linguagem: como os cavaleiros da idade do bronze das estepes eurasianas moldaram o mundo moderno, em tradução livre). Em entrevista à Science, Anthony reafirmou a hipótese dos kurgans, chamou o estudo de Atkinson de arbitrário e afirmou que o artigo “levanta mais dúvidas do que respostas”. Para ele, a pesquisa limitou-se a estudar o vocabulário, apenas um dos componentes da linguagem, “algo que não se deve fazer”, segundo Anthony.
Coerência
O cientista neozelandês, porém, afirma que não se importa com a observação. “Nosso estudo testou as duas hipóteses correntes, usando o mesmo método, que, a nosso ver, é bastante completo. Examinamos minuciosamente cada possibilidade, levando em conta diferentes modelos. No fim, a teoria da origem na Anatólia se mostrou muito mais coerente”, afirma. Sobre o fato de ter se baseado apenas nas palavras, ele afirma que Anthony está equivocado. “Pegamos o vocabulário como base, mas também investigamos as relações fonológicas (os sons) e morfológicas (a estrutura das palavras). Temos, sim, uma pesquisa robusta, que reforça a origem da linguagem na região da Anatólia”, garante.
Atkinson revela que, em 2003, ele publicou um artigo na revista Nature no qual também defendia a hipótese de Anatólia, a partir do método filogeográfico. “Mas muitos acadêmicos não se convenceram, argumentando que não tínhamos inserido na nossa árvore línguas antigas e já mortas. De lá para cá, ampliamos os dados e, consequentemente, os troncos. Checamos e rechecamos as informações exaustivamente. Não vejo motivo para que, agora, os linguistas se mostrem tão agitados como ficaram 10 anos atrás”, diz.