Pais cujos filhos têm dificuldade de leitura e, por isso, foram identificados como disléxicos devem ficar atentos e insistir no diagnóstico. O problema pode ter cura e a criança fazer parte, na verdade, de 15% da população portadora da síndrome de Irlen. Trata-se de um distúrbio do sistema visual que tem como sintomas mais comuns a dificuldade de adaptação à luz, desorganização espacial (noção de direita, esquerda, em cima e embaixo) e desconforto com o movimento e com figuras complexas e de alto contraste, como as zebradas. Tudo isso impacta os pequenos, principalmente por afetar a coordenação da movimentação ocular, e, consequentemente, prejudicar a leitura. Assim como a dislexia, manifesta-se com intensidade variável, mas é um problema oftalmológico demonstrado clinicamente e que tem tratamento.
Guimarães ressalta que todos os casos de síndrome de Irlen que não são identificados como tal acabam com diagnóstico de dislexia. “De maneira geral, observamos uma tendência de usar essa classificação como qualquer condição que afete o aprendizado e sobre o que não se sabe exatamente o que é. É mais um diagnóstico de exclusão – não é mais nada, então é dislexia – do que efetivamente de afirmação. É um termo não médico, mas educacional, para falar da dificuldade de leitura. O grande esforço que fazemos é tirar a Irlen desse saco comum”, diz.
Uma a cada seis crianças é portadora da síndrome, tem dificuldades de leitura, mas sai do consultório oftalmológico com um diagnóstico acima de qualquer suspeita. Isso porque o tradicional teste das letrinhas, ou teste de Snellen, trabalha com vogais e consoantes paradas e espaçadas, enquanto o portador de Irlen a enxerga de outra forma no dia a dia. A chefe do Departamento de Distúrbios de Aprendizagem Relacionados à Visão do Hospital de Olhos, Márcia Guimarães, explica que é importante avaliar a criança em algumas atividades. “Por que ela lê a primeira e a segunda frases e depois diz que está cansada, fala que quer ir ao banheiro, beber água? Tem algo na atividade nada confortável e aquilo se torna penoso”, avalia a médica.
TESTE DIFERENCIADO Márcia explica que, nesses casos, é preciso fazer o teste da visão em funcionamento, ao contrário do exame oftalmológico clássico. A avaliação deve excluir a instabilidade da movimentação ocular. “Quando lemos, normalmente movimentamos os olhos de três a quatro vezes por segundo. Para saber se a pessoa lê ou não, não posso me ater a ver se ela enxerga ou não a letra pequena, mas se enxerga e se movimenta bem os olhos da esquerda para a direita numa velocidade rápida e constante e com os dois olhos em sincronia”, afirma.
A médica acrescenta que, muitas vezes, a dificuldade que se transforma numa aversão à leitura está relacionada ao contraste do branco com o preto no papel, deixando a criança sem saber no que prestar atenção. Quem sofre de Irlen não consegue se adaptar ao contraste (claro e escuro ou preto e branco) e, nesse trabalho, costuma ter distorção de percepção, sentindo como se o texto estivesse mexendo e a palavra, trêmula. Márcia acrescenta ainda que o diagnóstico de Irlen e de dislexia devem ser feitos separadamente. Quem percebe a dislexia é o professor e o pedagogo e, apenas recentemente, se tornou um problema médico. Mas, no teste da letrinha, somente cerca de 15% das informações visuais envolvidas no aprendizado são supridas. O restante não é considerado.
"A leitura é a base do aprendizado na nossa sociedade. Quando não consegue aprender, a criança acaba alijada do processo de integração social e vai até, no máximo, o ensino fundamental. Eles são inteligentes, estratégicos e espertos, mas não se saem bem na sala de aula. O olho lacrimeja e coça. O aluno procura alternativa, fica disperso, começa a se mexer na cadeira, é rotulado como desatento, sem educação, hiperativo e acaba saindo da escola", diz. Os testes feitos no hospital verificam como a criança enxerga com luz natural e artificial – na luz fluorescente, o menino vê a letra se mexendo. Por meio de transparências de cores específicas, eliminam-se essas distorções levando de imediato a uma leitura mais fluente e compreensível. Márcia Guimarães destaca que as transparências são um recurso assistivo, não invasivo, de baixo custo e alta resolutividade, que potencializam o efeito das intervenções multidisciplinares mesmo na própria dislexia, se houver déficits visuais envolvidos.
O médico Ricardo Guimarães adverte que nem todos os oftalmologistas estão aptos a detectar a síndrome de Irlen nos consultórios. Segundo ele, a parte da visão relacionada à doença, a subcortical, ainda é uma "parte oculta do iceberg", daí a dificuldade de muitos profissionais em compreendê-la. "O que está comprometida é a visão subcortical, que nos dá a orientação. O que estudamos no consultório é a cortical, a capacidade de classificar os objetos", explica.
Ele acrescenta que os novos estudos da neurociência não foram plenamente incorporados na prática clínica. "Nossa medicina é muito voltada para o balcão. Conhecimentos que não envolvam produtos, ou seja, medicamentos ou técnicas, acabam tendo uma divulgação menor que aqueles com laboratório atrás fazendo propaganda. A maneira pela qual se faz o teste não envolve e não depende do instrumento mais importante do diagnóstico do teste oftalmológico, o de Snellen, mas exige do médico ficar com o paciente mais de uma hora no consultório. E hoje ninguém quer isso."
Dificuldade não está relacionada à inteligência
A chefe do Departamento de Distúrbios de Aprendizagem Relacionados à Visão do Hospital de Olhos, Márcia Guimarães, observa que, ao contrário da Irlen, detectada pelo oftalmologista, a dislexia envolve uma equipe multidisciplinar, com oftalmologistas, neurologistas, terapeutas e fonoaudiólogos, sendo identificada de diversas maneiras por cada profissional. A médica ressalta ainda que ela se manifesta de várias formas. Há pacientes com disortografia (ou disgrafia) e não consegue escrever corretamente; há aqueles que escrevem, mas no momento da leitura não pronunciam o som; e há ainda os casos de dificuldade com a matemática (discalculia), além da dislalia (troca da letra "l" pelo "r", por exemplo), além da dificuldade para diferenciar letras invertidas, como "d e "b", "p ou "q".
“O que chama a atenção é que a dificuldade não tem nada a ver com o grau de inteligência da pessoa. É alguém aparentemente normal, inteligente, com todas as facilidades de expressão, mas na hora de escrever surge a dificuldade. Por isso a criança evita escrever, porque começa a trocar letras e fica sem entender o que ocorre", relata Márcia. Segundo ela, normalmente, os portadores da doença, que atinge de 8% a 12% da população mundial, têm inteligência acima da média, pois, para driblar a deficiência, se esforçam além dos outros. "São pessoas extremamente talentosas em outras áreas, como em processamento espacial (montagem de quebra-cabeça e peças tridimensionais). Dão soluções imediatas a problemas matemáticos. Geralmente, são artistas, poetas, comediantes, pessoas que lidam com o lado da criatividade. Conhecimento padrão para eles é muito difícil", acrescenta.
A suspeita de dislexia recai depois dos 9 anos, quando a criança já foi exposta a um estímulo de escola mais intenso. A médica ressalta que há pouco tempo examinou uma família de empresários do ramo de supermercados de Belo Horizonte, em que todos os irmãos são dislexos. Eles adotaram uma estratégia de estudo em grupo. Enquanto um lê, os outros escutam. "A dificuldade pode ser na aquisição da habilidade de leitura ou no que a pessoa lê. Deve prestar tanta atenção no que está lendo a ponto de não conseguir se lembrar do conteúdo no fim do texto. Toda a atenção é desviada para decodificar o som", completa.