O primeiro passo foi analisar o DNA da saliva do carrapato para identificar quais genes eram os responsáveis pelo feito. A equipe identificou essas proteínas e as comparou com as existentes na biblioteca de genes. “Conseguimos uma similar e a utilizamos em um vetor. São bactérias Escherichia coli que têm a capacidade de replicar essa proteína recombinante”, conta Ana Marisa.
Se a empolgação já era grande até aqui, aumentou com os primeiros testes. “Percebemos que essa proteína da saliva do carrapato tem também propriedades antitumorais. Passamos, então, a testá-lo em células de vários tipos de tumores diferentes, como melanoma, mama, renal e de pâncreas. Todos tiveram resposta positiva”, comemora.
Em testes mais complexos, camundongos com melanoma foram tratados com a proteína desenvolvida. Depois de 42 dias, os tumores de pele foram eliminados e os animais permaneceram sadios. “As células saudáveis morrem de forma programada. O câncer surge, justamente, quando a célula não morre dessa forma planejada pelo organismo e começa a se multiplicar. Percebemos que essa molécula induz a célula tumoral a essa morte programada, colocando-a de volta ao ciclo normal do organismo. Testamos em cobaias com câncer inicial, câncer implantado e metástase pulmonar. Em todos os testes, percebemos regressão da doença. Seja inibindo o aparecimento do câncer, redução da massa tumoral ou evitando a metástase”, afirma Ana Marisa.
Ação seletiva
Outro fator fundamental percebido foi que a proteína ataca somente as células doentes: ela não tem nenhuma ação sobre as células sadias. “Nenhuma cobaia apresentou hemorragia. O que é muito bom. Afinal, em qualquer medicamente, o efeito benéfico deve ser maior que o maléfico. Na quimioterapia, por exemplo, células doentes e sadias são afetadas”, pontua a cientista.
Para que a pesquisa resulte em um medicamento, ainda existem alguns passos a serem dados. Viabilizar a produção em larga escala; realizar testes de eficácia e segurança farmacológica conforme as regras da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), tratando animais de diferentes espécimes e numa última etapa fazendo testes em humanos. Até o momento, a equipe do Instituto Butantan fez o que se chama prova de conceito, que são todos os testes possíveis de serem realizados em laboratório.
A pesquisa vai, agora, entrar justamente na fase pré-clínica, com os testes de segurança farmacológica. “No Brasil, historicamente, a indústria farmacêutica não investe nesse tipo de pesquisa por insegurança jurídica”, revela. As descobertas oriundas de instituições públicas são protegidas por lei, o que torna complicado a relação com as empresas privadas. “Estamos trabalhando nisso há seis anos. Já teríamos tempo para dizer se a técnica funciona ou não em humanos, pois há dinheiro e gente interessada. Não fizemos por conta da questão jurídica”, lamenta Ana Marisa. No entanto, como a pesquisa é bastante promissora, os laboratórios BioLab, Aché e União Química formaram um consórcio para a produção de futuros medicamentos que podem surgir a partir da descoberta.
Um dos resultados do estudo do Butantan que mais chamaram a atenção foram os envolvendo o câncer de pâncreas. “Não existe um tratamento efetivo contra esse tipo de câncer. Não há resposta. No máximo, uma cirurgia como alternativa. Testamos em câncer humano, induzido em animal, e tivemos resultados positivos com essa molécula. Então, podemos vislumbrar um tratamento inédito para a patologia”, reforça a farmacêutica Ana Marisa Chudzinski-Tavassi.
Segundo dados do Instituto Nacional do Câncer (Inca), o câncer de pâncreas representa 2% de todos os tipos, com nove mil novos casos anualmente. Desses, 75% morrem ainda no primeiro ano de tratamento. Em cinco anos depois do diagnóstico, a taxa de mortalidade sobe para 94%. A incidência do câncer de pâncreas ainda é considerada baixa, mas tem registrado aumento a cada ano com a maior expectativa de vida.
Febre maculosa
A picada do carrapato-estrela pode ter efeitos maléficos para a saúde. A febre maculosa, doença muitas vezes fatal, é transmitida pelo aracnídeo. Trata-se de uma doença infecciosa febril aguda, de gravidade variável, cuja manifestação pode ser leve até grave, com elevada taxa de letalidade. A febre é causada pela bactéria Rickettsia rickettsii, que infecta o carrapato. Os sintomas podem aparecer entre dois e 14 dias depois de o humano ser picado pelo carrapato contaminado. Os primeiros sintomas são febre elevada, dor de cabeça e e mialgia intensa e/ou prostração. Nos primeiros dias de febre pode aparecer a mácula, que dá nome à doença. São lesões róseas de pele, nos punhos e tornozelos, que progridem para o tronco, face, mãos e pés. Em dois ou três dias, elas adquirem certo volume e maior coloração, podendo ficar sensíveis ao toque. Podem ficar arroxeadas. Nas áreas de maior atrito, podem se unir e formar uma placa, que se parece com um hematoma. O tratamento precoce é essencial para evitar formas mais graves da doença. A doença não é transmitida de pessoa para pessoa. Embora o carrapato costume se alimentar do sangue de cavalos, pode ser encontrado em vários outros mamíferos, como capivaras, gambás, coelhos, no gado e em cães.