Tudo o que ele queria era alguém que não o tratasse com diferença, que não o olhasse com piedade ou como um ser cheio de não me toques. Ele, então, optou pelo improvável. Philippe é um rico aristocrata francês que, depois de um acidente de parapente, ficou tetraplégico, dependendo de cuidados 24 horas por dia. Cansado da piedade de qualificados enfermeiros, resolveu dar uma chance a Abdel, um imigrante negro sem qualquer experiência no ofício, pobre, politicamente incorreto e ainda com antecedentes criminais, mas que carrega o diferencial de tratar Philippe de igual para igual. Tinha tudo para ser um cuidador desastroso, mas a experiência se tornou um encontro, sem lágrimas ou dó, cheia de gargalhadas e de uma lição: amizades verdadeiras não têm tempo certo para ocorrer, não esbarram em limitações, preconceitos e, tampouco, diferenças. Elas acontecem e fazem a vida valer a pena.
A história é real e chegou no bom tom da comédia às salas de cinemas atraindo nada menos do que 30 milhões de espectadores, consagrando-se como o filme francês mais visto no mundo. Um fenômeno que levou o nome de Intocáveis e que, em 2013, representa a França na 85ª cerimônia do Oscar. Não há nada de clichês, como se espera, e ninguém o assiste sem se sentir tocado. O enredo é baseado no livro Segundo suspiro, escrito pelo próprio Philippe Pozzo di Borgo, mas poderia ser o relato de muitas pessoas que, como o aristocrata, encontraram diante de suas limitações alguém que lhes desse a mão, sem dó, piedade ou qualquer outra cerimônia.
O Estado de Minas encontrou alguns desses protagonistas. São idosos ou portadores de necessidades especiais que viram nesse outro alguém, que nem sequer tem o sangue da família correndo nas veias, o colo para se apoiar, desabafar, rir, chorar e se livrar da solidão. Do outro lado, esses cuidadores também descobriram naquela pessoa que tanto precisa da sua ajuda um ouvinte, amigo de verdade e de todas as horas. Assim, nasceram laços fortes de amizades, antes inimagináveis, que, formados pelo acaso, assemelham-se na leveza dos toques, que ora são de auxílio, ora de companheirismo.
Ainda que ‘tocáveis’, pelo menos para a dupla do filme, não seria esta a melhor palavra para defini-los. “Somos ambos ‘intocáveis’ em diversos aspectos. Abdel, de ascendência do Norte da África, sentiu-se marginalizado na França tal como a classe dos intocáveis na Índia. Não se pode ‘tocar’ nele sem o risco de levar um soco, e ele corre tão rápido que os tiras, repetindo suas palavras, conseguiram pegá-lo apenas uma vez em sua longa carreira de delinquente. Quanto a mim, atrás dos altos muros que cercam minha mansão em Paris, minha gaiola dourada, como diz Abdel , abrigado da necessidade graças à minha fortuna, faço parte dos ‘extraterrestres’, nada pode me atingir. Minha paralisia total e a ausência de sensibilidade me impedem de tocar o que quer que seja; as pessoas evitam até roçar a minha pele, tamanho o medo que lhes causa minha condição física, e ninguém pode me tocar o ombro sem desencadear dores lancinantes. ‘Intocáveis’, portanto”, escreveu Philippe, em seu livro.”
Unidos pelo acaso
É claro que ninguém quer, por livre e espontânea vontade, depender da ajuda do outro para seguir vivendo. Ter alguém para dar banho, trocar a roupa ou lhe dar comida é para qualquer adulto consciente um fardo difícil de lidar. Mas a vida nos prega peças das quais não há como fugir. Em segundos, a liberdade dos movimentos pode não ser mais a mesma. Apesar de trágico, para muitos a condição não foi o fim, e ainda que haja sofrimento, há também um segundo suspiro, que vem com a descoberta de que um outro alguém pode trazer um novo olhar sobre a vida, trocando o que era pesado pela leveza de ser e sentir.
Se Intocáveis fosse a história de dois brasileiros, certamente os protagonistas seriam Marco Túlio Ricaldoni de Miranda, de 50 anos, e Joaquim Silveira Furtado, de 45. Há 33 anos, Túlio, assim conhecido, poucos dias antes de completar 17 anos, sofreu um acidente de moto e ficou tetraplégico. A partir daí, passou a depender dos outros para tudo, até que sete anos depois encontrou Joaquim, que também era jovem e tinha pouca ou nenhuma experiência com alguém limitado como Túlio, mas tornou-se seu cuidador. “Foi empatia. Nós nos tornamos grandes amigos. Viajávamos juntos, fomos para o Espírito Santo, Rio de Janeiro e outros tantos lugares para nos divertir”, lembra Túlio, que destaca que Joaquim se entrosava facilmente com sua turma de amigos. “Tanto é que todo mundo passou a chamá-lo de Joca.”
Assim como no filme, a amizade de Túlio e Joaquim se fortaleceu pela confiança cada vez mais maior entre ambos. “É um cara em quem posso contar para tudo”, destaca Túlio. Joaquim trabalhou com ele por 15 anos, até que se casou, teve filhos, mas não deixou o grande amigo sem sua amizade. Vira e mexe ele está lá, ao lado de Túlio, jogando conversa fora. “Ele não é mais meu cuidador, mas alguém como ele é impossível de encontrar. Tenho uma relação de confiança até maior do que tenho com meus familiares.” O Estado de Minas conheceu de perto esse companheirismo. Quando Joaquim chegou para a entrevista, na casa de Túlio, os dois riam, contavam casos e se divertiram com o assunto. Brincadeiras não faltaram. “Ele me ensinou muita coisa. Aprendi a gostar de rock antigo e dávamos boas risadas juntos. É uma relação para o resto da vida. Quando o cuidador dele não pode vir, eu venho e o ajudo”, diz Joaquim. Apesar da harmonia, entre os dois há divergências. Túlio é atleticano e Joaquim, cruzeirense. “Desse assunto não podemos falar”, diverte-se Túlio, às gargalhadas.
LAÇOS
Para surpresa da equipe do Estado de Minas, Túlio contou ter um filho, de 9 anos, de uma relação com uma cuidadora. “Foi algo que aconteceu. Hoje, não somos casados, mas ela e o meu menino moram comigo”, comenta, certo de que na vida há, sim, boas surpresas. “O que vemos no filme e em tantas outras histórias dos laços que se formam entre quem cuida e quem precisa de cuidados está na forma de tratar ‘de igual para igual’”, comenta a psicóloga da Associação Mineira de Reabilitação Marta Alencar, que diz que, quando se trata de portadores de necessidades especiais, muitos os tratam com dó ou piedade. “Mas quem está nessas condições não quer ser tratado como coitado e é aí que vai se formando uma relação diferenciada, porque é muito mais motivador e encorajador se ver como uma pessoa com possibilidades”, diz.
A confiança nesses encontros do acaso é a chave fundamental, segundo destaca Marta. “Os dois lados têm que perder a vergonha e ter o respeito um pelo outro. É uma relação de entrega, do confiar nas mãos do outro”, afirma. Marta diz que o profissional não pode também invadir o espaço de quem precisa da sua ajuda. “A melhor relação é quando essa mão que auxilia leva quem precisa dela para a socialização , o que cria laços com o mundo. O cuidador pode ser essa ponte.”
Profissão regulamentada
Em outubro, o Senado aprovou um projeto de lei que vai regulamentar a profissão do cuidador de idoso. Os profissionais terão que fazer curso de capacitação para aprender a lidar melhor com essa faixa etária, que já representa mais de 10% da população brasileira. Além de gostar do trabalho, o cuidador tem que ser um profissional qualificado, que saiba como tratar o idoso corretamente. Além da obrigatoriedade do curso, o projeto também estabelece que ele tenha, no mínimo, 18 anos e ensino fundamental completo. O projeto também aumenta em um terço as penas para os crimes previstos no Estatuto do Idoso quando forem cometidos pelo cuidador.
Nem tão fácil assim...
O filme Intocáveis é dirigido por Olivier Nakache e Eric Toledano. Eles adaptaram a história real de Phillippe Pozzo di Borgo, milionário tetraplégico que criou um forte laço de amizade com o enfermeiro argelino, que foi seu braço direito, Abdel Sellou. No filme, Phillippe é interpretado por François Cluzet. E Abdel, que no cinema ganhou o nome de Driss, é vivido por Omar Sy.
Em setembro, o longa foi selecionado para representar a França na 85ª cerimônia do Oscar. Em 15 de janeiro de 2013, será definido se está entre os cinco finalistas para competir na categoria de melhor filme estrangeiro, na qual mais de 60 países vão concorrer. A cerimônia de premiação do Oscar será em 24 de fevereiro. Além disso, o filme recebeu nove indicações ao César, o Oscar francês.
Mas como mostra bem o filme, esses encontros não são tão fáceis. Logo no início da trama, Philippe faz uma seleção para contratar seu futuro cuidador, o que fica claro que a busca é mesmo uma questão de identidade. “É extremamente difícil. Primeiro, porque se trata de um relacionamento muito próximo e muito íntimo. Depois, há a questão do custo, que não é baixo. Além disso, você tem que pensar que irá colocar uma pessoa dentro da sua casa. E não pode ser qualquer um”, destaca o analista do Ministério Público de Minas Gerais e professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) Daniel Augusto dos Reis, de 45 anos.
Aos 18, ele ficou paraplégico ao mergulhar em uma lagoa. “Desde então, precisei de um cuidador, que só se encontra com uma questão de ‘feeling’”, diz. Para ele, muitas pessoas não têm o menor jeito para o trabalho, pecam na questão da confiança. “Agradeço a Deus todos os dias por, finalmente, ter encontrado duas pessoas em quem posso confiar. Eles são muito mais do que meus funcionários. São meus amigos”, conta Daniel, referindo-se a Pedro Alves do Santos, de 37, e Reinaldo Ribeiro Silva, de 31. “Sei que os dois não vão me deixar na mão”, aposta.
E não vão mesmo. Pedro está há quase quatro anos cuidando do professor e conta que já recebeu outras propostas de emprego, mas não quer largar o amigo. “Nunca tinha feito esse trabalho. Fui para fazer um teste e desde então estou com ele”, lembra. Ele conta que o bom da relação dos dois é que um respeita as diferenças e os direitos do outro. “Com ele, aprendi a valorizar mais a vida. Ele é um guerreiro e um grande amigo”, afirma. Há um ano no ofício, Reinaldo diz ver Daniel como um companheiro. “Antes, atuava como auxiliar de serviços gerais”, revela, dizendo ter aprendido muita coisa com Daniel. Uma delas é de ver a vida de uma forma diferente, bem mais positiva. “Temos uma relação de amizade, conversamos sobre tudo, contamos piadas, casos, assistimos a filmes, passeamos. É alguém especial para mim, como um irmão”, compara.
Daniel ressalta que o relacionamento é uma situação diferente dos outros encontros da vida. “Se eu não oferecer para eles uma contrapartida, como uma estabilidade de emprego, não vou mantê-los aqui. Hoje tenho a tranquilidade de entregar o meu carro nas mãos deles e, dentro das minhas possibilidades, o que eu puder fazer para contribuir, eu faço”, diz.
Os cuidadores se envolvem emocionalmente
Autora do livro Quem vai cuidar de nossos pais?, Marleth Silva entrevistou profissionais que cuidam dos outros de vários estados brasileiros, inclusive de Minas Gerais. Certa de que a relação é de laços fortes, Marleth diz que os próprios cuidadores também precisam de cuidados. “Todo mundo é um cuidador. Uma filha, uma esposa, uma irmã. É um trabalho muito duro.”
Como está a situação em Honduras?
Fomos avisados pelas Organização de Estados Americanos (OEA) que em vez de se precipitarem como haviam feito anteriormente e julgado Honduras sem nos ouvir, que corrigiram seu procedimento e integraram uma comissão de quatro Estados, que chegam hoje, na qual se estabelece que se contate com o governo de Roberto Micheletti e que recebem as informações para comprovar os fatos que aconteceram. Eles vão regressar e informar diretamente o conselho.
Micheletti vai fazer uma campanha internacional para explicar o que aconteceu?
Não é campanha. O presidente da República vai expressar a posição oficial em cadeia televisiva de forma coerente, transparente, à comunidade internacional e a todas às embaixadas. Preparamos e enviamos informações para todas as embaixadas.
Então o plano agora é receber a comissão da OEA, comprovar que se cumpriu o ordenamento jurídico e esperar que Micheletti seja confirmado internacionalmente como presidente da República?
O presidente Micheletti em todo momento é presidente e não estamos esperando que venham a confirmar que é presidente. O povo hondurenho já o escolheu como presidente. O que nós vamos comprovar é o cumprimento da lei, mas não substituir presidentes ou justificar os cargos. Aqui é presidente com OEA ou sem OEA. Aqui não houve golpe de Estado, aqui se respeita toda a Constituição Política, todo ordenamento jurídico.
O que pensaram quando saíram declarações como a do presidente Lula, que diz que não vai reconhecer outro governo que não seja o de Zelaya?
Nós respeitamos o critério de todos os Estados, todo Estado é livre segundo os critérios que lhe corresponda, assim como todo estado é livre para defender-se, formar parte, e buscar os amigos ou retirar-se. O único que vamos fazer é a reciprocidade. Os que não quiserem ter relações com Honduras, tampouco Honduras vai querer ter relações.
Diz-se que as consultas públicas que Zelaya queria fazer eram ilegais. Por quê?
Aqui as consultas só podem ser feitas por um organismo eleitoral, sob a competência autônoma da Justiça Eleitoral. Mas o pior foi o que eles fizeram foi mudar no diário oficial o caráter da consulta, que já não era uma consulta técnica, mas já se estava convocando a Assembleia Constituinte e depois de uma consulta espúria.
Zelaya não ficou como vítima? O que vai acontecer agora?
Nós já temos um presidente eleito como diz a constituição, por unanimidade, então o que foi presidente poderá regressar já sem cargo, como faltou e desacatou as ordens constitucionais. Este é o único caso na América Latina que vai ser um precedente em que sai o exército para fazer com que a lei seja cumprida e para defender a constituição. Em outras partes, os militares o que fazem é ficar com o poder.
Uma questão de sorte
Terezinha Santos logo se apressou para pôr um belo vestido em Aura Massara, de 86 anos, mais conhecida como dona Maninha, de Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. No quintal, Rosilene Gomes de Oliveira Rodrigues, a Rosa, às gargalhadas, lembrava das muitas histórias já vivenciadas por ela e dona Maninha. “O vestido está muito curto? Não gosto dele longo”, brincou dona Maninha, se preparando para a entrevista, que foi de risos e muitas brincadeiras. O trio, de mulheres adultas, mais parece um encontro de adolescentes, cheio de segredos e muita alegria. “Se um dias elas fossem embora? Ficaria chateada”, confessa dona Maninha.
Se os risos da relação entre Philippe e Abdel fazem parte da comédia francesa mais vista no mundo, as gargalhadas também são o remédio que esse trio muito especial encontrou para os dias ganharem mais leveza. Desde os 82 anos, por causa das limitações da idade, ela foi convencida pelos filhos de que precisaria de uma companhia. No início, resistiu. “Já a conhecia como vizinha e o filho dela me ofereceu esse trabalho. Na época, vinha das 8h às 17h. Ela me chamava de sombra. Passei a vir das 7h às 10h, só para ajudá-la no banho, lanche e caminhada. Aí, um dia, falei que estava indo embora, ela disse que eu poderia ficar mais tempo”, lembra, orgulhosa, Rosilene, há quatro anos como cuidadora de Aura, que hoje, com o avanço do tempo, está mais debilitada e precisando de mais cuidados. Rosa sempre revezou o serviço com outras cuidadoras. Há quatro meses, Terezinha chegou à casa e as duas se revezam em cuidados de 48 horas.
E não pense que não há ciúmes entre elas. O carinho de dona Maninha, que diz aos risos que gosta de todas iguais, é disputado. “Tem ciúmes, sim”, confessa Rosa.“Já tive propostas para ganhar mais, mas ela eu não largo. É alguém que passou ser também da minha família”, conta Rosa. Terezinha, que está na profissão há 35 anos, diz que a relação é cada vez mais próxima e de muito afeto. “Falamos muita bobagem”, diverte-se, e dona Maninha ri alto, como uma garota travessa. Ontem foi aniversário dela e, claro, a dupla de risonhas não pôde nem sonhar em faltar. Dona Maninha é uma mulher de sorte. Além das duas cuidadoras, que têm curso, tem também ao seu lado Maria Madalena da Silva, que trabalha como doméstica em sua casa há 45 anos.
LUXO
“É questão de sorte”, reconhece o presidente da Associação dos Cuidadores de Idosos de Minas Gerais, Jorge Roberto Afonso de Souza Silva. Ele conta que, hoje em dia, o profissional tem se tornado “de luxo”, por causa do alto custo. “Muitos familiares têm reclamado que ao entrevistar um cuidador, a primeira pergunta dele é quanto vai ganhar”, critica Jorge, dizendo que a procura está cada vez maior. “Com isso, muitos têm inflacionado o real valor do trabalho.”
Na associação há 5 mil cadastrados. “A relação do cuidador com o idoso extrapola questões emocionais. Há uma dependência de ambos os lados”, diz Jorge, contando que cuidou de um idoso alcoólatra durante anos. “Era um homem cheio de traumas na vida. Ele sofreu um acidente de carro, em que sua neta teve sequelas, e perdeu um irmão, que morreu no mar. Só soube da história, porque, na nossa relação, ele passou a confiar muito em mim e desabafar sobre o passado.”
Segundo ele, a adaptação do cuidador com um idoso não é da noite para o dia, o que dirá a confiança. “O período de três meses é decisivo. A partir daí começam a criar os laços. Quando os idosos morrem, muitos cuidadores perdem o rumo”, conta, destacando a importância de esses profissionais terem cursos especializados para o ofício.