Uma equipe de pesquisadores da Universidade de Oxford, no Reino Unido, desenvolveu uma forma de impressão 3D que não funciona com filamentos ou outro material industrial, mas transforma água e outros elementos químicos em estruturas que funcionam como um tipo artificial de tecido vivo. A partir de um projeto virtual semelhante ao usado no processo tradicional de prototipagem, a máquina imprime um material sólido e semelhante a uma borracha, não muito diferente do tecido cerebral. A técnica, descrita na revista Science desta semana, pode, em alguns anos, resultar na produção de pedaços funcionais de tecidos a serem incorporados a membros e órgãos danificados.
As esferas aquosas tem um diâmetro de apenas 50 micrômetros, o equivalente a um milésimo de milímetro. Essa dimensão é apenas cinco vezes maior que a de uma célula viva. As gotas são conectadas ao se tocarem, formando estruturas sólidas. De acordo com os autores do artigo, essa é a primeira vez que esse efeito é observado em um material artificial. Outro ponto inédito da pesquisa é a capacidade de as gotículas se comunicarem entre si, assim como fazem as células de um tecido natural. As membranas de lipídios têm poros que permitem a passagem de água, e também podem transmitir pequenas cargas elétricas, similares às usadas num organismo vivo.
A impressão feita com materiais orgânicos já era possível, mas a criação de um tecido artificial que funcione da mesma forma representa uma grande vantagem para a comunidade médica. “Como não usamos células vivas, sabemos exatamente os ingredientes que vão na estrutura, e podemos predizer o comportamento desse material. Células vivas são mais complicadas, elas interagem umas com as outras, e são imprevisíveis”, compara Gabriel Villar, principal autor do estudo.
Como não haveria componentes vivos no tecido artificial, ele também exigia menos cuidados. No caso de um transplante, ele não teria de ser constantemente nutrido com oxigênio e ainda duraria consideravelmente mais. Por enquanto, as estruturas feitas em laboratório podem durar várias semanas, quando feitas em água, e muitos dias, se montadas numa gotícula de óleo. O material fabricado também evitaria a rejeição ou o aparecimento de tumores que podem ocorrer em transplantes com pedaços de tecidos reais ou feitos de células-tronco, pois ele não tem código genético.
Maleável
A permeabilidade do tecido fabricado também revelou uma possibilidade até então inesperada pelos cientistas. “Descobrimos isso há algumas semanas, num caso em que fizemos um tecido em formato de flor. Ele se dobrou depois numa esfera oca, o que seria muito difícil de imprimir diretamente”, conta Villar. Isso ocorreu porque algumas gotículas tinham uma concentração maior de sal do que outras, o que fez com que a água migrasse e causasse a dobra expontânea. O efeito, de acordo com Gabriel, é parecido ao observado em músculos ou em espécies vegetais como a dioneia, planta carnívora que se fecha sobre uma presa.
Se dominada, a técnica pode facilitar a produção de tecidos em formatos que seriam muito complexos ou mesmo impossíveis para a impressora 3D. Outra vantagem do contorcionismo voluntário do tecido é a possibilidade de fabricar uma tira que mudaria de formato somente depois de inserida no organismo. Se uma tira, por exemplo, formasse um círculo, o encontro das duas partes poderia induzir uma reação química com um tempo calculado.
A pesquisa teve início em 2007, e os autores ainda não têm previsão de quanto tempo será necessário para que o primeiro fragmento de tecido seja impresso e anexado a um órgão vivo. Segundo eles, ainda é necessário adicionar novos ingredientes à mistura aquosa, como proteínas, para se conseguir uma estrutura complexa que se comporte como um tecido nervoso. Outro objetivo do grupo é dominar a impressão para acelerar o processo com o depósito simultâneo de diversas gotas d’água de uma só vez ao tecido artificial. Antes de ser usada em próteses orgânicas, a técnica pode resultar também em uma forma inteligente de administração de medicamentos.
Sob medida
A impressão 3D já é usada para a fabricação de próteses há alguns anos, mas o material usado pode substituir apenas ossos ou cartilagem e ainda não é capaz de se comunicar com o corpo como o tecido feito no Reino Unido. O paciente passa por um tipo de escâner que faz um mapa virtual da parte do corpo a receber a prótese. Depois, o formato serve como base para o projeto virtual, que determina onde o material será depositado pela impressora.
“A impressora não costuma fazer a prótese, mas um molde de um modelo 3D. Em cima desse molde inverso é que a substância é colocada para fazer o objeto”, explica Luciano Silva, professor do Grupo de Pesquisa em Visão Computacional, Computação Gráfica e Processamento de Imagens (Imago), da Universidade Federal do Paraná (UFPR). O método é muito mais preciso que a modelagem da forma direta no corpo do paciente, com materiais como gesso. No computador, é possível adaptar o projeto para as necessidades da pessoa que vai receber a prótese e criar um produto final muito mais detalhado. “Hoje, o grande desafio é fazer a parte da robótica conversar com o organismo vivo. A produção de capilares em laboratório faria essa ligação nervosa.”
Silva acredita que, no futuro, seja possível manter um modelo escaneado do corpo e do interior de cada paciente, como o registro de arcada dentária que os dentistas já fazem hoje. O molde do órgão obtido por meio de uma ultrassonografia serviria como molde para a criação de um novo tecido impresso diretamente no consultório médico. “Mas como se trata de pesquisa, isso ainda é um ensaio experimental. Até virar uma orelha sintética feita com esse tipo de impressão ou até mesmo um órgão, ainda há muito para avançar”, ressalta o especialista.