Jornal Estado de Minas

Paciente com doenças raras têm dieta desenvolvida em Minas

Com base em pesquisas da UFMG de mais de três décadas, grupo cria alimentos voltados para pacientes que precisam de cuidados especiais. Um dos produtos chega a 1,8 mil pessoas pelo SUS

Marinella Castro
Em todo o mundo, cerca de 500 milhões de pessoas são portadoras de alguma das 7 mil doenças catalogadas como raras, sendo 80% delas de origem genética. O diagnóstico precoce e rápido, que pode surgir nos primeiros dias de vida, é capaz de provocar uma revolução na qualidade de vida desses pacientes, desenvolvendo uma complexa rede interligada pela pesquisa científica e o acompanhamento médico especializado. Esse é o caso da fenilcetonúria, diagnosticada nos primeiros dia de vida dos recém-nascidos pelo Teste do Pezinho. A dieta alimentar, chave para evitar deficiências no desenvolvimento neuromotor dessas crianças, levou pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) a colocar em prática estudos de três décadas. Esse pode ser considerado um caso claro de como a pesquisa científica, que muitas vezes leva anos para ser depurada, retorna benefícios à sociedade.


Um dos exemplos dessa realidade é a Profenil, dieta que funciona como remédio para 1,8 mil brasileiros portadores da fenilcetonúria e distribuída pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O composto foi criado por um grupo de pesquisadores formado no Departamento de Ciência de Alimentos da Faculdade de Farmácia da UFMG. A tecnologia nacional é importante porque colocou no mercado um produto capaz de competir com linhas internacionais, reduzindo o custo da dieta. Cada lata do alimento, que deve ser consumido por toda a vida, custa cerca de R$ 100, e o consumo, no caso de adolescentes, chega a quatro recipientes por mês.


Uma pesquisa da Associação Brasileira da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma) publicada em março revela que entre 6% e 8% da população mundial é atingida pelas chamadas doenças raras, somando entre 420 milhões e 560 milhões de pessoas. Desse total, cerca de 13 milhões estão no Brasil. Em torno de 80% têm origem genética, o restante decorre de infecções bacterianas e virais, alergias ou causas degenerativas. A maioria, ou 75%, se manifesta no início da vida e afeta, sobretudo, crianças de até 5 anos. Segundo o estudo, 95% das doenças não têm tratamento e demandam serviços especializados de reabilitação que promovam a melhoria da qualidade de vida dos pacientes.


Estima-se que, em Minas Gerais, a cada mês, uma criança tenha o diagnóstico da fenilcetonúria confirmado. O composto alimentar criado permite que os pacientes da doença rara tenham uma vida normal e com a mesma expectativa de longevidade do conjunto da população brasileira. Carlos Lopes, pesquisador do grupo, explica que a pesquisa na área de alimentos especializados teve início em 1977, com a professora Maria Alice Silvestre. Já o alimento específico para atender portadores da fenilcetonúria foi desenvolvido entre 2000 e 2010. Os pacientes com a doença têm deficiência da enzima que degrada o aminoácido fenilalanina, fazendo com que ele se acumule no corpo. “O tratamento é com dieta restrita em proteínas e consumo de alimento isento em fenilalanina, aminoácido que está presente em carnes, ovos, leite e derivados”, explica.


 A dieta, base para se evitar consequências como o retardo mental irreversível, é um complemento alimentar que contém aminoácidos livres, vitaminas e minerais, sem a fenilalanina. Segundo Lopes, os últimos estudos apontam que a incidência da fenilcetonúria é de um para cada 15 mil nascidos vivos. “Entre as doenças raras, é a de maior incidência.” O estudo foi desenvolvido em três fases. A primeira foi a compreensão total da patologia. “Depois, fizemos um levantamento da real necessidade de desenvolvimento da dieta e só então partimos para a criação da fórmula”, acrescenta.

NOVAS PESQUISAS Para a médica geneticista do Instituto Fernandes Figueira, da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz), e diretora de relacionamento institucional da Sociedade Brasileira de Genética Médica (SBG) Dafne Horovitz, as doenças raras reúnem um grupo bastante heterogêneo de enfermidades e podem ter repercussões diferentes em seus portadores, como retardo mental ou má-formação. “Individualmente, as enfermidades têm baixa incidência. No entanto, observando o conjunto da população elas são frequentes”, observa.  A especialista acredita que no Brasil a pesquisa científica abordando as inúmeras enfermidades classificadas como raras têm amplo espaço para crescer, promovendo o desenvolvimento de alternativas eficientes aos pacientes, e também de mais baixo custo, como o caso da dieta especializada para os portadores da fenilcetonúria.
Para Dafne, a organização do sistema público de saúde para atendimento desses pacientes, inclusive com foco na prevenção e no aconselhamento genético, é um dos caminhos importantes para promover uma melhor qualidade de vida aos 13 milhões de brasileiros portadores das chamadas doenças raras. “A consulta pública iniciada esse mês pelo Ministério da Saúde é o primeiro passo para desenvolver no país a organização de um sistema complexo.” Ela explica que a partir dos resultados da consulta deve ser publicada uma portaria específica. Com isso, todo o segmento deve ganhar estímulo positivo, da rede de atendimento aos pacientes à pesquisa científica.

Diagnóstico O diagnóstico preciso é importante para evitar que os pacientes de doenças consideradas raras sejam submetidos a dietas ou a tratamentos, geralmente de custo elevado, sem a correspondente comprovação científica. Henrique Oswaldo Torres, membro da Sociedade Brasileira de Nutrição Parenteral e Enteral, diz que a fenilcetonúria é um bom exemplo de tratamento apoiado em diagnóstico preciso. No entanto, ele lembra alguns casos, como a doença celíaca, onde a restrição de alimentos à base de glúten só tem os efeitos esperados nos portadores da doença, apesar de eles serem consumidos por outros públicos.  


O desenvolvimento da fórmula Profenil deu origem à empresa Invita Nutrição Especializada, que faz parte da incubadora de empresas da UFMG Inova e hoje está na incubadora de empresas Habitat, da Fundação Biominas. “Repetimos na empresa o sucesso do meio acadêmico. Queremos tirar o estigma do raro. No caso da fenilcetonúria, há triagem e tratamento eficaz que pode solucionar o problema”, afirma Carlos Lopes, que além de pesquisador é sócio e diretor-executivo da empresa. Segundo ele, o grupo é o primeiro a lançar no mercado a fórmula infantil para dietas com restrição à lactose.

 

 

enquanto isso...

 

...ministério da saúde abre consulta pública

 

O Ministério da Saúde publicou no dia 11 a consulta pública do documento que estabelece diretrizes para a atenção integral e acolhimento às pessoas com doenças raras na rede pública. O objetivo é instituir a Política Nacional de Atenção às Pessoas com Doenças Raras no Sistema Único de Saúde para oferecer atenção integral a pacientes com anomalias congênitas, problemas metabólicos, deficiência intelectual e doenças raras não genéticas. Também entra em consulta o texto que traz as normas para a habilitação de hospitais e serviços que farão o atendimento a esse público no país. Com a instituição da política para doenças raras, a assistência será estendida aos familiares dos pacientes. A consulta terá duração de 30 dias. Esse é o primeiro passo para a implantação de uma política estruturada e organizada para atender doenças raras no Brasil e na América do Sul.