Jornal Estado de Minas

Brasileiros estudam danos do HIV ao sistema nervoso

Sistema nervoso central e periférico, afetados pelo vírus da Aids, geram problemas de memória, raciocínio e vagarosidade motora. Estudos são relativamente recentes, mas despertam interesse de cientistas

Augusto Pio
- Foto: ARTE: JANEY COSTAOs avanços no tratamento da infecção causada pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) ocorridos na ultima década melhoraram de forma marcante a sobrevida dos pacientes. A introdução da terapia antirretroviral combinada levou à diminuição da carga do vírus e o aumento da imunidade das pessoas portadoras da Aids, reduzindo a probabilidade de infecções oportunistas. No entanto, ao longo desses anos, alterações cognitivas e neuropatias periféricas começaram a se manifestar no sistema nervoso central (SNC), as chamadas neuroaids, que agora são foco de muitas pesquisas em todo o mundo.
“Pessoas infectadas com o HIV e tratadas com antirretrovirais estão vivendo mais, devido à melhor resposta ao tratamento com longos períodos de controle da quantidade de vírus no corpo. No entanto, mais de 30% de todos os pacientes infectados pela doença têm formas leves de comprometimento cognitivo, incluindo tanto os indivíduos que não estão imunossuprimidos (quando o sistema imunológico está muito fragilizado) como aqueles nos estágios finais da Aids”, explica o neurologista do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais Paulo Christo, que é também professor de pós-graduação da Santa Casa de Belo Horizonte. Especialista dedicado aos estudos sobre neuroaids no Brasil, Christo lidera um grupo de pesquisa que investiga as características clínicas das alterações cognitivas e neuropatias periféricas em portadores do HIV.

“Quando o vírus da Aids surgiu, as manifestações neurológicas que ocorriam no organismo do paciente eram de natureza oportunista e apareciam devido à baixa imunidade do organismo do doente. Com a melhora do tratamento, a imunidade aumentou juntamente com a expectativa de vida. Com os pacientes vivendo mais, a incidência de problemas neurológicos decorrentes da ação direta do vírus ficou mais evidente”, pontua.

Entre as mudanças mais significativas que ocorrem no paciente portador do vírus HIV estão as alterações de memória recente, lentidão de raciocínio, vagarosidade motora, dificuldade de atenção e concentração e dificuldade de tomar decisões. Alterações de neuropatia periférica podem causar sintomas como dor e queimação nos pés ou falta de sensibilidade e fraqueza nos pés. A forma mais grave de transtorno cognitivo no HIV é a demência, que leva a uma marcante alteração das funções básicas da vida diária do paciente.

Conforme o neurologista Sérgio Monteiro de Almeida, professor adjunto do Departamento de Patologia Médica da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pesquisador do Instituto de Pesquisa Pelé Pequeno Príncipe de Curitiba (PR), o sistema nervoso central e o sistema imunológico são considerados os principais órgãos-alvo na infecção pelo HIV. “As manifestações neurológicas diretamente relacionadas ao HIV são meningites viral aguda e crônica, alteração de memória associada ao HIV e envolvimento do sistema nervoso periférico (neuropatias). Avanços no diagnóstico e aumento da sobrevida alteraram o aspecto da infecção pelo vírus, não mais considerada uma doença fatal e sim uma doença crônica. Depois da instituição da terapia antirretroviral altamente efetiva, a incidência da maioria das doenças oportunistas, incluindo aquelas que afetam o SNC, se reduziu significativamente.”

Um estudo pioneiro realizado em Curitiba em parceira da UFPR com a Universidade da Califórnia/San Diego, cujo investigador principal no Brasil foi o próprio Sérgio Almeida, avaliou as alterações de memória em pacientes HIV positivos. “Este foi o primeiro estudo a avaliar o impacto dos subtipos de HIV na alteração de memória em uma mesma população no mundo. Essa investigação em uma mesma população afasta vários fatores de erro que poderiam comprometer a correta interpretação dos resultados.”

Este trabalho foi apresentado na Conferência de Retrovírus e Infecções Oportunistas de 2012, em Seattle, nos EUA, com grande repercussão na comunidade científica internacional. A frequência de alteração cognitiva encontrada no estudo foi de 52%; 40% de depressão; e 24% de suicídio. Os níveis, segundo o professor da UFPR, são bastante elevados quando comparados com a população geral no Brasil.

Menos de uma década de investigação

A comunidade médica e científica começou a falar em neuroaids há menos de uma década. “Como o foco inicial era nas doenças oportunistas do sistema nervoso, os problemas neurológicos causados primariamente pelo HIV acabavam passando despercebidos pelos neurologistas e infectologistas”, lembra o neurologista Paulo Christo, ressaltando que em 2011, em Frankfurt, na Alemanha, 66 especialistas de 30 países abordaram questões sobre o manejo dos transtornos cognitivos. “O encontro gerou uma publicação na revista Clinical Infection Disease. Fui um dos dois brasileiros que participaram. A reunião Mind Exchange Program acabou gerando um guia prático para o diagnóstico, monitoramento e tratamento dos transtornos cognitivos do HIV. Este ano, iniciamos uma pesquisa no HC/UFMG para avaliação e acompanhamento de pacientes portadores do HIV, com o objetivo de avaliar a frequência, o grau de acometimento e a evolução deles no decorrer de um ano.”

Em um estudo com 97 pacientes, no Hospital Eduardo de Menezes, em Belo Horizonte, referência no estado em doenças infectocontagiosas, foi observado que 10% dos pacientes podiam ter uma carga viral no liquor – líquido que circula no cérebro – maior que no sangue periférico. “Em última análise, verificamos que no sistema nervoso central a quantidade de vírus foi maior que a detectada no sangue periférico. Ou seja, o vírus não estava controlado e podia agir mais no cérebro.”

Segundo Christo, os cientistas sabiam que o sistema nervoso era afetado de alguma forma, ocorrendo diferentes graus de transtorno da função cognitiva, neuropatia periférica e, mais recentemente, sendo atingido por complicações atribuídas aos efeitos adversos dos antirretrovirais. “Mas, com a diminuição da morbidade e mortalidade com os antirretrovirais, consequentemente tem-se um cenário em que há aumento do número de pessoas vivendo com Aids. No entanto, o que temos observado é que esses pacientes podem representar um grupo ‘neurologicamente vulnerável’ para doenças dessa natureza, com o sistema nervoso servindo como santuário para replicação do HIV parcialmente suprimido”, acrescenta.

VACINA Embora pesquisadores de vários países se debrucem sobre experimentos e se dizem mais próximos de uma vacina para o HIV, o vírus contamina pessoas e causa mortes em todo o mundo. Calcula-se que existam mais de 600 mil pessoas no Brasil infectadas pelo vírus, que é a causa mais comum de disfunções cognitivas em jovens.

Segundo Sérgio Almeida, observa-se um envelhecimento da população infectada pelo HIV por três motivos: aumento da sobrevida dos pacientes pela melhora dos métodos de diagnóstico e condutas terapêuticas; frequência maior de infecção em pacientes acima de 60 anos por mudanças de hábitos de vida; e portadores de HIV/Aids envelhecendo mais precocemente, acarretando o aparecimento de doenças próprias de pessoas mais idosas em populações mais jovens. (AP)