Roberta Machado
A máquina desenvolvida nas universidades de Londres e de Cardiff funciona como um aparelho de tomografia, semelhante ao usado em exames médicos. Mas a técnica tem uma precisão microscópica, que enxerga detalhes na proporção de milionésimos de milímetro. A cada parcela crescente de radiação bombardeada sobre o material, uma nova camada é digitalizada. Durante o processo, o documento é girado para que uma faixa de 1cm da circunferência seja analisada. Depois, o documento é deslocado, e tudo é feito de novo, até que toda a extensão dele tenha sido escaneada.
“Os escâneres feitos aqui são mais sensíveis que os comerciais, mas isso tem o custo de uma velocidade de varredura mais lenta”, explica Graham Davis, da Universidade de Londres, que trabalhou no projeto da máquina. “A sensibilidade é o fator mais importante nessa aplicação, no entanto. Então, temos de viver com isso”, pondera. O processo, garante o pesquisador, não danifica os pergaminhos, contanto que eles estejam secos.
Um software criado em Cardiff se encarrega de encaixar as fatias em ordem, formando uma imagem similar à visão de como seria o registro completamente esticado. O sistema usa a imagem tridimensional e aplica uma sequência de três passos de análise: primeiro ele filtra os dados para remover “ruídos” da imagem e diferenciar as camadas coladas do pergaminho. Depois, ele achata a superfície em uma imagem de duas dimensões, e, por fim, projeta a tinta na reconstrução bidimensional. O resultado é uma imagem detalhada de até 40 megapixels. “Não é como ver o pergaminho verdadeiro, pois é uma radiografia, então não há cores, e o brilho indica a densidade”, explica o codesenvolvedor do programa, Paul Rosin, da Escola de Ciência da Computação e Informática de Cardiff.
Ferro
Em um papel comum, o mesmo processo renderia apenas a digitalização do formato da folha, sem letras destacadas. Na escrita dos pergaminhos, no entanto, cada letra virtual aparece com surpreendente definição na tela. Isso ocorre porque a tinta usada antigamente tinha resíduos de ferro, que se destacam na tomografia. A máquina consegue distinguir as diferentes densidades do metal e do pergaminho, feito de peles de animais esticadas. As palavras ficam mais escuras como um pino de metal, que aparece em um exame de raios X.
Tintas indianas e à base de carbono, por exemplo, são transparentes para esse tipo de equipamento. Se o material também tiver se tornado ilegível com o tempo, pode ser que nem mesmo escritas à base de ferro sejam decifradas. “Dependendo do ambiente e do excesso de iluminação e de umidade, isso pode danificar muito o pergaminho. A iluminação também pode prejudicar a escrita, que se apaga com o tempo”, aponta Edmar Gonçalves, chefe do serviço de conservação da Fundação Casa Rui Barbosa, do Rio de Janeiro.
No entanto, aponta o especialista em restauração, o pergaminho é um suporte muito mais resistente que o papel. Mesmo que ele tenha sofrido danos que impeçam a sua manipulação, e tenham de ser mantidos enrolados, as chances de que as letras ainda estejam visíveis são grandes. Nesses casos, a abordagem mais comum é submeter o material a um processo de reidratação para recuperar a flexibilidade original do couro e, somente então, tentar desenrolá-lo.
Microvisão O processo foi testado com um rolo de pergaminho do século 19 bastante pequeno e ressecado. Ainda fechado, ele foi colocado em um tubo transparente na máquina, que varreu toda a circunferência do cilindro e montou uma imagem que poderia muito bem ter sido obtida em um escâner. O documento – que era legítimo, mas não tinha nenhum valor real – foi depois desenrolado e as imagens foram comparadas, comprovando a fidelidade da imagem produzida.
Teoricamente, a reconstituição funcionaria em pergaminhos de qualquer tamanho, enrolados ou dobrados de qualquer forma, desde que tivessem a tinta ferrogálica. “Um problema em potencial é a escrita aparecer fora de ordem devido ao vazamento da tinta, quando a tinta em uma superfície atravessa o pergaminho para o outro lado. Isso obviamente criaria caracteres ilegítimos”, alerta Paul Rosin. O grupo, no entanto, ainda não teve esse problema com os pergaminhos estudados.
A tecnologia, chamada microtomografia, já tem aplicações na área médica e para caracterizar materiais em poços de petróleo e construções. “Ela é usada para ensaios não destrutivos. Você enxerga a estrutura interna por meio da radiação, sem ter de abrir a amostra. Funciona com qualquer tipo de material”, destaca Ricardo Tadeu Lopes, professor do Laboratório de Instrumentação Nuclear da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A técnica, ressalta o especialista, ganhou destaque em diversas áreas nos últimos cinco anos.
No Brasil, o tipo de equipamento já foi usado para análises em obras de arte e em artefatos como a carruagem de D. Pedro II, no Museu de Petrópolis. “Vimos como era a estrutura interna para fazer a restauração. Você pode verificar como se abre, e como se desmonta”, conta Lopes. Com o exame, os restauradores entenderam melhor de que maneira lidar com o material e como reproduzir as características danificadas pelo tempo.
Essa, contudo, é a primeira vez que a técnica de reconstrução resulta em uma imagem verdadeiramente legível. A equipe britânica trabalhou em várias adaptações do equipamento e do software para garantir a legibilidade dos documentos copiados. Instituições, como o Museu Marítimo Nacional inglês, já mostraram interesse na tecnologia. Um museu escocês chegou a requisitar o equipamento para decifrar uma escrita que parecia estar escondida em um papiro preso à perna de uma múmia.