Brasília – Eles não falam, não escrevem cartas, não vão a programas de auditório procurar o irmão perdido nem têm rede social para caçar o pai, do qual foram separados no nascimento. Ainda assim, se cruzarem na rua com um parente – nem precisa ser de primeiro grau –, os animais conseguem identificar o familiar, mesmo que jamais o tenham visto na vida. Essa habilidade, que os humanos não têm, já foi identificada em mamíferos, aves e até plantas e micróbios. Até hoje, contudo, permanece um mistério para biólogos, veterinários e zoólogos, que quebram a cabeça para entender o que está por trás dessa incrível capacidade de reconhecimento.
Publicado na edição deste mês da revista Ethiology, um estudo da Universidade de Medicina Veterinária de Viena constatou que a identidade olfativa pode ser determinante, mais que familiaridade e fenótipo. Há quem defenda que é natural um esquilo, por exemplo, reconhecer seus pais e irmãos, já que foi criado entre eles. A tese, contudo, se desmonta porque nem todo animal, como cachorros e gatos, crescem com a família. Diferentemente do que ocorre na vida selvagem, esses bichos geralmente são separados da mãe com três meses, idade em que a maioria dos filhotes é colocada à venda. Ainda assim, um estudo da Universidade de Belfast, na Irlanda, indicou que cachorros domésticos sabem, inclusive, diferenciar o parentesco, identificando irmãos, pais e primos.
Outras teorias sugerem que a resposta está na combinação fenotípica. Traços semelhantes justificariam a facilidade de reconhecer um indivíduo da mesma família – embora, sob os olhares humanos, todos os bichos de determinada espécie ou raça sejam idênticos, isso não é verdade, e nem uma mosca é igualzinha à outra. Na hora de fazer o reconhecimento, o animal se basearia nas características físicas dos parentes, informações que ficam guardadas na memória genética. “Nem sempre esse método é confiável”, observa Joachim Frommen, da Universidade de Medicina Veterinária de Viena e autor de um novo estudo sobre o tema. “Animais são capazes de identificar parentesco distante, mesmo em indivíduos que têm aparência diferente das deles”, conta.
Em um primeiro experimento, o esgana-gata tinha de escolher entre cardumes compostos por irmãos e um grupo da mesma espécie, mas sem parentesco. “O peixe preferiu os parentes em todas as repetições do teste, o que não se explica pela familiaridade”, diz Frommen. Isso porque, na segunda etapa da pesquisa, o animal poderia optar por fazer parte de um cardume formado pelos irmãos com os quais já estava acostumado ou acompanhar outro grupo, também composto por familiares desse nível de parentesco, mas constituído por indivíduos desconhecidos. Nesse caso, não houve preferência. O esgana-gata se encaixou nos dois cardumes de irmãos, o que, segundo o veterinário, reforça a ideia de que é o parentesco, e não a familiaridade, que importa.
Embora reconheça que a semelhança física tenha um papel na identificação, Frommen aposta mais no cheiro. Mesmo vivendo dentro d’água, os peixes têm uma capacidade olfativa bastante apurada. A bióloga Jill Mateo, pesquisadora da Universidade de Chicago, diz que, mesmo depois de um longo período de hibernação, os animais reconhecem os parentes, indicando que provavelmente não se trata de memória olfativa. Para ela, o mais provável é que familiares compartilhem um odor determinado. Ao se deparar com um espécime que cheira igual a ele, o bicho percebe que faz parte da mesma “árvore genealógica”.
“O olfato é uma importante ferramenta de sobrevivência”, diz Mateo, que pesquisou o mecanismo de reconhecimento familiar em grupos de esquilos. “Eles precisam disso não só para se proteger criando grupos, mas porque devem reconhecer os irmãos para evitar cruzar com eles, o que pode trazer efeitos negativos na linhagem genética”, afirma. De acordo com a pesquisadora, entender como ocorre a identificação dos parentes é importante para conhecer melhor a seleção de hábitat, de relações sociais e de parceiros. “Essas informações ajudam os cientistas a organizar grupos de animais que se adaptarão com mais sucesso ao ambiente natural depois de sair do cativeiro e serem reintroduzidos na vida selvagem”, diz.
Semelhança Na pesquisa que fez na Universidade de Chicago, Jill trabalhou com esquilos cujas mães foram capturadas no Parque Nacional de Yosemite, na Califórnia. Depois do nascimento, a cientista misturou as ninhadas, de forma que os esquilos foram criados tanto com irmãos quanto com estranhos. Na primavera, quando estavam com 25 dias, 32 animais e suas mães foram transferidos para outra gaiola, onde filhotes não parentes foram introduzidos. Em novembro, eles voltaram ao laboratório e começaram a hibernar, acordando apenas em abril do ano seguinte. Jill, então, coletou amostras do odor dos animais e testou o interesse dos esquilos por seus irmãos de sangue e de criação. “Eles se interessaram muito mais pelo cheiro dos irmãos dos quais foram separados ainda recém-nascidos do que pelo odor dos esquilos com os quais foram criados”, conta a cientista.
Isso não significa que os mamíferos roedores não tenham criado laço com os irmãos de criação. Eles apenas se esqueceram do cheiro, uma indicação da inexistência de memória olfativa. Os animais se fixaram nas amostras dos parentes porque o odor era semelhante ao deles. No verão, quando as famílias foram reunidas, os esquilos mostraram interesse tanto pelos familiares de sangue quanto pelos animais com os quais cresceram.
A bióloga também estudou o reconhecimento de parentesco entre pinguins, animais que vivem em colônias formadas por mais de mil indivíduos. Mesmo nessa multidão, eles são capazes de identificar uns aos outros, dado que já se conhecia. A pesquisa de Jill foi a primeira a mostrar que essas aves também sabem diferenciar os parentes sanguíneos dos demais integrantes do grupo. O odor familiar é secretado por uma glândula, que produz um óleo importante para deixar as penas secas, mesmo no mar.
“O que achamos muito interessante é que esse tipo de óleo é produzido por outras espécies animais, incluindo uma variedade de insetos, como abelhas e moscas. Os insetos também são capazes de reconhecer familiares graças ao olfato”, observa Bryan D. Neff, professor da Universidade de Western Ontario e especialista em identificação de parentes no mundo animal.
“Quanto aos pinguins e às aves em geral, é importante saber diferenciar quem são seus vizinhos e quem são seus irmãos, por uma questão evolutiva”, afirma. O especialista afirma que o reconhecimento olfativo pode ajudar funcionários de zoológicos e aviários a introduzir os animais em novos recintos. “Se você tratar a área primeiro com um cheiro com o qual estão familiarizados, é mais provável que tenham uma boa adaptação”, diz. O mesmo vale para o local onde os bichos são colocados para cruzar. Se estiver impregnado pelo perfume de um irmão, no entanto, é provável que o animal se recuse a reproduzir.