Brasília – Olhos grandes, focinho fino e afiados dentes à mostra. A cara de mau pertence ao tinhoso, um primo pré-histórico dos crocodilos e jacarés descoberto na Bacia Bauru por uma equipe de paleontólogos de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. O trabalho que encontrou o fóssil do novo integrante da família de crocodiliformes foi divulgado na semana passada na revista Cretaceous Research. Predador e carniceiro, o Gondwanasuchus scabrosus – como a espécie foi cientificamente batizada – viveu há 80 milhões anos na região onde hoje fica o Brasil, mais especificamente os estados de Minas Gerais e São Paulo. Conviveu com dinossauros e outras seis espécies terrestres da família Baurusichidae, à qual pertence.
A descoberta foi feita durante escavações na Fazenda Buriti, no município paulista de General Salgado. Lá, foram achados um crânio e uma mandíbula quase completos e em ótimo estado de conservação. Depois de examinar a aparência do bicho, o professor da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) Thiago Marinho e o pesquisador da Universidade do Rio de Janeiro (UFRJ) Fabiano Iori decidiram apelidá-lo de tinhoso. “Quando o olhamos lateralmente, notamos que os ossos acima das órbitas oculares são inclinados, e isso dá a ele uma cara de mau, de tinhoso. Os dentes são comprimidos e têm serrilhas nas bordas anterior e posterior, como uma faca de cortar carnes. Então, além da cara, ele tinha armas que justificavam o apelido”, conta Marinho.
Naquela época, a área em que o animal viveu era quente e semi-árida. Os pesquisadores descobriram que ele era carnívoro, terrestre e tinha cerca 40 quilos, chegando a alcançar 1,3 metro de comprimento. Ele seria um pouco menor do que um cão da raça São Bernardo, que pode alcançar 90 quilos. No entanto, o que ele não tinha em tamanho tinha em adaptações que o tornavam um predador agressivo.
Os dentes do G. scabrosus, comprimidos lateralmente, se assemelhavam aos de alguns dinossauros carnívoros. Eles também tinham de cinco a seis sulcos profundos, que deviam aumentar a resistência às quebras, característica considerada pelos autores como única. “Ele não se parecia muito nem com um jacaré nem com um crocodilo, pois o crânio dele era alto, enquanto o dos jacarés e dos crocodilos é baixo e largo. Ele não era um predador aquático. A narina era lateral e anterior ao crânio, o que, mais uma vez, indica hábitos terrestres”, esclarece o pesquisador mineiro. Possivelmente, caçava animais menores, mas também era oportunista. “Se encontrasse uma carcaça, provavelmente ele se alimentaria dela. Essa é uma refeição econômica, em que não precisaria gastar energia para caçar”, indica o autor da descoberta. Segundo ele, a espécie se assemelhava ao dragão-de-komodo, lagarto que também tem focinho oreinirostral e caça atacando as presas com mordidas dilacerantes.
Compreensão da história
Ricardo Pinto, professor de paleontologia da Universidade de Brasília (UnB), que não participou da descoberta, explica que o tinhoso não era um dinossauro. “Ele é do grupo dos crocodilos, que é pouco diversificado e não conta com muitos sobreviventes. No passado, as espécies terrestres desse grupo tiveram mais sucesso”, diz. Para ele, a descoberta é uma ferramenta para ajudar os pesquisadores a reconstruirem cenários do passado e, assim, compreender a história da vida na Terra. Marinho concorda. Uma das conclusões da descoberta é que a área onde a espécie foi encontrada tinha diversas espécies de crocodilos, mas poucas de dinossauros carnívoros.
“Isso é algo curioso. É possível que os crocodilos fossem mais facilmente preservados pelos processos de fossilização nessa região e que fossem muito mais abundantes do que os dinossauros carnívoros também. Mas a diversidade de formas e de hábitos desses crocodilos tem nos surpreendido. Eles ocupavam nichos ecológicos distintos. O G. scabrosus tinha visão tridimensional que devia ajudá-lo a avaliar as distâncias para fazer ataques precisos. Esse tipo de visão é similar à de alguns dinossauros carnívoros. Essas evidências nos permitem sugerir que a espécie poderia ter ocupado o nicho ecológico de dinossauros carnívoros de pequeno porte, muito raros na Bacia Bauru. No Cretáceo, essa era uma terra de crocodilos”, conclui Marinho.
Extenso
A Bacia Bauru é uma formação geológica que se distribui pelos estados de Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás e nordeste do Paraguai. Abrange uma área de
370 mil quilômetros quadrados.
Nome
O nome do gênero Gondwanasuchus é formado pela denominação do antigo supercontinente Gondwana e da palavra suchus (crocodilo, em grego). Já o termo que define a espécie, scabrosus, é o equivalente em latim para tinhoso.
No tempo dos dinos
Ricardo Pinto - professor de paleontologia da Universidade de Brasília (UnB)
“O G. scabrosus foi contemporâneo dos titanossauros, que incluem alguns dos maiores animais que já caminharam sobre o nosso planeta e cujo peso se aproximava, em alguns casos, de 100t. A descoberta dos fósseis é importante, porque eles permitem que entendamos a história da vida no local. Como algumas espécies fósseis foram localizadas em regiões muito distintas, sabemos que os continentes um dia foram unidos e formaram a Gondwana. Os pequenos fósseis são usados também pelas empresas que querem explorar recursos naturais, como petróleo. Se a Petrobras, por exemplo, quer saber se já chegou às camadas do Período Cretáceo, observa os fósseis nas rochas.”