Jornal Estado de Minas

Pesquisa identifica alteração cerebral do transtorno da personalidade narcisita

Estudo aponta relação entre a atrofia de regiões específicas do órgão e um transtorno psiquiátrico caracterizado pelo sentimento de grandiosidade

Jorge Macedo - especial para o EM

Bruna Sensêve

Brasília – “Umbigo, meu nome é certeza, só é real o que convém à realeza. Umbigo, meu nome é verdade, sou o dono do mundo e o rei da cidade (...) Eu sou mais eu! Dê cá um close no Narciso”, canta Lenine em Umbigo. Na composição, o músico pernambucano descreve como pensam as pessoas egocêntricas, arrogantes, esnobes ou, simplesmente, metidas a besta. No entanto, em alguns casos, achar-se o centro das atenções pode ser sinal de um problema psiquiátrico denominado transtorno de personalidade narcisista.

Um agravante é que o limite entre o tolerável e o patológico, nesses casos, nem sempre é muito claro. E foi pensando em entender esse limiar que pesquisadores alemães encontraram um fator que pode ajudar na diferenciação. Depois de exames de imagem cerebral, eles descobriram que pessoas com o transtorno têm reduzido o volume de matéria cinzenta em uma região do cérebro chamada ínsula anterior, associada com a empatia, ou seja, a sensação de compaixão pelos sentimentos dos outros.

A equipe liderada por Stefan Roepke, pesquisador do Departamento de Psiquiatria da Universidade de Medicina Charité, em Berlim, usou como base para a pesquisa resultados de um estudo recente no qual foram identificadas alterações neurofuncionais relacionadas com a empatia em indivíduos saudáveis, mas com traços marcados de personalidade narcisista. Os cientistas reuniram, então, 34 voluntários, sendo que metade deles tinha diagnóstico de personalidade narcisista e a outra metade era saudável. Todos passaram por exames de imagem e volumetria cerebral.

Comparados aos indivíduos saudáveis, os pacientes com o problema apresentaram um volume significativamente menor na ínsula anterior esquerda. O mesmo padrão foi observado na região correspondente na parte direita do cérebro e outros locais, como no córtex pré-frontal e a rede paralímbica frontal. “Um menor volume de massa cinzenta nessas regiões do cérebro, particularmente na ínsula anterior esquerda, pode ser relacionado a deficiências na empatia, uma característica marcante de pacientes com o transtorno narcisista”, escrevem os autores do artigo, publicado no Journal of Psychiatric Research.

Complexidade

Para Raphael Boechat, professor do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília (UnB), é importante considerar que as áreas cerebrais identificadas também correspondem a outras características de personalidade. “Hoje, não pensamos mais em áreas cerebrais delimitadas para cada função. O cérebro interage, não é tão matemático”, pondera. No entanto, ele garante a relevância do trabalho, por ser o primeiro a mostrar a real diminuição de alguma área cerebral. “Normalmente, vemos mais estudos sobre uma determinada área que funciona mais ou que funciona menos”, aponta.

A dificuldade em tornar esse resultado definitivo está na origem do transtorno, que ainda não é clara para a comunidade científica. Ainda não é possível dizer se as pessoas com o problema nascem com ele ou o desenvolvem durante a vida.

Apesar da complexidade da questão, a associação da atrofia de regiões cerebrais com transtornos de personalidade pode trazer impacto futuro na prática clínica. A tecnologia aplicada hoje em neurologia traz técnicas de estimulação cerebral de regiões específicas com implantes de eletrodos, campos elétricos ou eletromagnéticos. O estímulo de regiões menores, que a princípio teriam uma função reduzida, pode ser uma terapia indicada. “Isso, claro, para transtornos mais graves, como a psicopatia, e se a delimitação das áreas cerebrais for confirmada. Técnicas mais novas de neuromodulação agem localmente e são usadas para depressão, mal de Parkinson e outras doenças”, diz o professor da UnB.

Não é doença Segundo o professor Celso Alves dos Santos Filho, do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), existem três principais características do transtorno da personalidade narcisista: sensação de grandiosidade, necessidade de admiração e falta de empatia. “Não é possível falar que um déficit de empatia é a principal característica do transtorno, porque ela pode ser observada em outros casos, como na psicopatia.”

A diferença está nos objetivos, contextos e significados que envolvem essa falta de empatia. O psicopata não sente empatia porque enxerga as pessoas como um objeto a ser manipulado a seu favor, rumo à conclusão de seu objetivo. Já o paciente narcisista acredita que as pessoas têm a  função de confirmar que ele é superior aos outros. Para a psiquiatria, o transtorno narcisista não é considerado uma doença, mas uma inadaptação de funcionar de maneira adequada na sociedade. O narcisismo patológico também precisa ser diferenciado de uma autoestima elevada. Neste último caso, explica Santos Filho, a pessoa tem uma noção real ou próxima da realidade de seus valores e qualidades. Seria alguém mais estável e seguro de si mesmo.

Já o narcisista com o transtorno é inflexível e sua autoestima é muito dependente de eventos externos, com o acréscimo de uma visão irreal de si mesmo e uma supervalorização de suas características pessoais. “Para o narcisista estar bem, ele precisa que a vida ou as pessoas mostrem que ele de fato é tão bom quanto acha que é. Como não vai ocorrer sempre, ele acaba se deprimindo.”

Palavra de especialista
Exame não traz  diagnóstico
Daniel Martins de Barros, coordenador do Núcleo Forense do Instituto de Psiquiatria do Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

“É importante lembrar que os transtornos de personalidade são uma forma de ser. Mais do que um sintoma, são um jeito disfuncional de estabelecer relações interpessoais. O narcisista é pautado por uma posição autocentrada, até egoísta, voltada para si. O que define se é uma condição patológica não é a presença de uma alteração em um exame, seja do cérebro ou de sangue. A definição é clínica, como tudo em psiquiatria. Se aquela condição impacta o dia a dia, a convivência com as pessoas pode ser considerada um problema. A análise feita pelos pesquisadores nesse trabalho é estatística. Quer dizer que, na média, as pessoas avaliadas por eles têm um menor volume de massa cinzenta na ínsula, ligada à empatia. Mas isso não pode ser considerado um diagnóstico. Existem pessoas que não têm esse transtorno, mas apresentam essa redução, e vice-versa.”