Paloma Oliveto
Brasília – O início da atividade agrícola representa mais do que uma inovação tecnológica. Na realidade, esse é o marco da civilização, o berço da sociedade como se conhece hoje – povos assentados, que se relacionam trocando mercadorias e informações culturais. Até agora, os especialistas afirmam que essa seria uma revolução cujo início é bem localizado, numa área onde, atualmente, estão Iraque, Turquia, Síria e a Ilha de Chipre. Há muitas evidências de que, ali, há 12 mil anos, grupos de caçadores-coletores deixaram o estilo de vida nômade e fixaram-se na terra. Contudo, em um estudo publicado na edição de quinta-feira da revista Science, arqueólogos defendem que, em vez de centralizado, o advento da agricultura foi um fenômeno disperso, ocorrendo em diferentes lugares ao mesmo tempo.
A afirmação do grupo de especialistas se baseia em achados feitos no sítio arqueológico de Chogha Golan, no Irã, mais especificamente na província de Ilam. Lá, cientistas da Universidade de Tübingen, na Alemanha, e do Centro Iraniano de Pesquisas Arqueológicas encontraram os mais antigos fósseis de cereais domesticados. Aos olhos de hoje, pode-se argumentar que o Irã é uma região muito próxima de Iraque, Turquia, Síria, o que não justificaria a tese de uma origem dispersa da agricultura. No entanto, para homens e mulheres que viviam há 12 milênios, a distância do sítio de Chogha Golan (bem mais ao sudeste da Ásia) para as outras áreas onde a atividade agrícola surgiu era imensa.
Para fazer a descoberta, os pesquisadores armaram suas tendas no semiárido iraniano, aos pés das montanhas Zagros, entre 2009 e 2010. Sob 8m de solo arenoso eles encontraram potes de barro para armazenamento de alimentos, artefato que só começou a ser produzido depois que as populações humanas se estabeleceram no campo. Além disso, nos 10 hectares do sítio arqueológico foram descobertas ferramentas de cultivo, elementos arquitetônicos e até peças decorativas, como pequenas esculturas representando homens e animais. O rico e preservado material também inclui amostras biológicas: 21 mil fósseis de plantas e sementes, incluindo espécies de cereais modernos. A análise de restos animais – ossos e cascos, por exemplo – revelou que, na região, havia uma variedade de animais domésticos e selvagens, como cavalos, caprinos, bovinos, pássaros, peixes e crustáceos.
Usando a tecnologia de acelerador de espectrometria de massa, descobriu-se que a ocupação humana do local ocorreu entre 9,8 mil e 12 mil anos atrás, coincidindo com a disseminação da agricultura em outras áreas. Durante dois milênios, a produção de alimentos foi intensa em Chogha Golan, com evidências de intervenções tecnológicas para o melhoramento de grãos e das condições aráveis ao longo desse tempo.
“A grande quantidade de cimento e de ferramentas específicas para moagem de grãos pode ser interpretada como um indicativo de tecnologias sofisticadas de processamento agrícola”, afirma Simone Riehl, pesquisadora da Universidade de Tübingen, que liderou os trabalhos. Ela garante que não se trata de plantações de subsistência, como sustentam alguns arqueólogos contrários à tese de que o solo iraniano é um dos berços civilizatórios.
Simone explica que o material escavado está de acordo com o que se espera de um assentamento permanente, com arquitetura avançada, presença de artigos decorativos e construção de sepulturas embaixo do piso das casas. “Se compararmos o estilo funerário de Chogha Golan ao de covas encontradas em povoamentos pré-neolíticos, vemos que são padrões completamente diferentes. As sepulturas que escavamos são de um local com estrutura social complexa.” Pela quantidade e qualidade de peças resgatadas pelos arqueólogos, acredita-se que a população local prosperou. “A riqueza acumulada abriu caminho para que, posteriormente, grandes centros urbanos persas se estabelecessem”, acredita.
Outra evidência de que o sítio arqueológico foi, milhares de anos atrás, um assentamento permanente é a evolução dos grãos e sementes. À medida que o tempo passa, criam-se novas camadas de sedimentos e, quanto mais profundo o estrato, mais antigo ele é. Dessa forma, é possível investigar mudanças que ocorreram em determinado intervalo de tempo; no caso, nos dois milênios de ocupação agrícola de Chogha Golan. As camadas mais profundas revelam que, no início da fixação no campo, a população utilizava sementes selvagens. Com o tempo, contudo, tanto as sementes quanto os grãos tornam-se maiores, o que significa um melhoramento técnico persistente. Para Simone, não se trata apenas de transferência tecnológica do nordeste para o sudeste do Oriente Médio. Embora não exclua essa possibilidade, a arqueóloga lembra que a datação por carbono é uma forte evidência de que o cultivo, no Irã, teve início na mesma época da agricultura praticada em outras regiões.
Cautela necessária
Especializado em estudos sobre a história do sedentarismo, o arqueólogo Joachim Burger, da Universidade de Mainz, na Alemanha, reconhece que a pesquisa conduzida pela colega de Tübingen foi construída sobre “uma riqueza de materiais arqueológicos e técnicas de análise”. Contudo, para ele, ainda não é possível afirmar com certeza que a agricultura desenvolveu-se há 12 mil anos no local que hoje é o Irã. “A origem da agricultura é a origem da civilização, por isso temos de ter muita cautela com essas informações. Quando falamos em transição de caçadores-coletores para agricultores, não estamos nos referindo a um evento único, que ocorreu de sopetão”, lembra Burger, dizendo que, nesse intervalo, nômades cultivavam grãos para subsistência. “Mas as descobertas em Chogha Golan são muito interessantes e promissoras”, acredita.
O arqueólogo orientalista George Willcox, da Universidade de Lyon, também pondera que o material escavado e o próprio sítio devem ser objeto de outros estudos, que confirmem a teoria de Simone Riehl. Porém, as evidências coletadas são fortes. “As instalações encontradas, as ferramentas próprias para agricultura, a produção de grãos em larga escala, tudo isso sugere fortemente que o desenvolvimento agrícola se deu em Chogha Golan de forma independente”, admite.