Isabela de Oliveira
Quando grandes aves, como gansos, pelicanos e os próprios íbis-eremitas, levantam voo, costumam se agrupar no céu formando um desenho que lembra a letra v. Uma das principais teorias para explicar essa formação é que os pássaros estão, na realidade, aproveitando as correntes de ar criadas pelas asas dos companheiros que estão à frente. Teorias da aerodinâmica também tentam prever em que posição os animais deveriam ficar para que a economia fosse ainda maior. Outros cientistas, ainda, baseados em gravações e fotos de gansos no ar, afirmam que não existe sincronia perfeita entre o batimento de asas nos grupos. Assim, esses pesquisadores defendem que a formação em v é uma ferramenta que existe apenas para dar maior amplitude visual às aves e, assim, evitar colisões.
Os estudos anteriores foram baseados principalmente em observações ou fotografias, e usaram princípios como o de asas fixas, responsável pelos grandes avanços da aeronáutica nos últimos 100 anos. Portugal e Usherwood, pela primeira vez, usaram sensores capazes de coletar dados mais precisos sobre o comportamento cooperativo das aves migratórias. Segundo eles, há, sim, relação entre as batidas das asas e o desempenho do grupo, e a dupla até cogita que as aves observam o comportamento umas das outras para sincronizar seus movimentos.
O professor titular do Departamento de Fisiologia do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP) José Eduardo Bicudo explica que as aves têm sistemas sensoriais bastante apurados que permitem uma orientação espacial muito precisa. “Na minha opinião, a formação em v observada em aves migratórias, principalmente nas de grande porte, decorre de uma interação de vários atributos importantes, entre os quais, os biomecânicos, os energéticos, os sensoriais e os comportamentais. É importante ressaltar que o voo migratório faz parte do ciclo reprodutivo de várias espécies, daí a importância de compreendê-lo nas suas mais variadas facetas”, explica o especialista, que não participou do estudo.
Treino
Os pesquisadores do Reino Unido focaram sua análise no comportamento de cada indivíduo do grupo durante o voo migratório em v. Para isso, eles contaram com a ajuda de 14 filhotes de íbis-eremita que foram chocados no Jardim Zoológico de Viena, na Áustria, em março de 2011. Os animais, depois de saírem dos ovos, foram imediatamente entregues a cuidadores humanos. Aos quatro meses de vida, começaram a ter aulas de voo, seguindo um paramotor, espécie de paraquedas motorizado. Os treinos duravam de uma a quatro horas, e os “alunos” percorriam até cinco quilômetros diariamente. No fim de julho daquele ano, quando já dominavam bem a arte de voar, as aves passaram a ser monitoradas por meio de sensores e GPS.
Esse foi o maior desafio, de acordo com Steven Portugal. Ele precisou desenvolver um dispositivo que pesasse menos do que 5% da massa corporal da ave e fosse leve o suficiente para que as características de voo não fossem afetadas. Um pequeno sensor foi criado em laboratório, sob medida, pesando apenas 23g, o equivalente a 3% da massa corporal dos bichos. O primeiro voo migratório começou em agosto, partindo de Salzburg , na Áustria, rumo a Orbetello, na Itália. Na viagem, todas as batidas de asa de cada uma das 14 aves foram registradas pelos sensores durante um intervalo de 43 minutos.
“Descobrimos que os intrincados mecanismos envolvidos nos voos indicam um certo nível de ‘consciência’ espacial dos colegas próximos e uma notável capacidade de sentir e prever os fluxos de ar”, afirma Portugal. O cientista sugere que os íbis-eremitas e, possivelmente, outras aves migratórias têm estratégias bem complexas de batimento de asas, e que o comportamento não é fruto do acaso.
Sincronia
Os cientistas contam que as aves demoraram pelo menos 45 minutos para arquitetar a formação. Ainda que pareçam seguir despreocupadas, na verdade, pode ser que estejam observando umas as outras para determinar a melhor posição dentro dessa geometria. A todo momento, os pássaros de trás combinam as batidas com as da ave que está na frente. Dependendo da posição na formação e da distância em que estão uma da outra (na hora em que ocorre a troca de líder, há uma mudança na formação), o bater de asas pode ser sincronizado ou não, tudo para aproveitar a corrente de ar que dê mais impulso.
A dinâmica, segundo Usherwood, é a seguinte: a ave que vai à frente, ao bater as asas, deixa para trás um redemoinho de ar. Nesse turbilhão, o ar sobe (upwash) e desce (downwash) alternadamente e na mesma intensidade. “O redemoinho cria uma onda que é formada por um downwash seguido de um upwash. Se o pássaro detrás estiver na posição certa, ele pegará só o upwash e não precisará fazer tanta força nas asas”, explica.
Usherwood diz que, embora já esperasse um resultado como esse, não deixa de ser interessante a complexidade do trabalho das aves, pois elas, além de assumirem a posição correta, precisam decidir como bater as asas – uma preocupação que pilotos de avião que quisessem poupar energia durante um voo coletivo, por exemplo, não precisariam ter, pois as asas das máquinas estão sempre paradas. “Talvez, os íbis-eremitas prestem atenção no que o colega da frente está fazendo. Afinal, o movimento do downwash e do upwash acompanha o sobe e desce das batidas das asas do líder”, especula. Portugal ressalta outro dado preliminar que julga interessante e merece mais investigação: “Um número limitado de pássaros tomam a maioria das funções de liderança, o que é engraçado, porque todas as aves da pesquisa tinham a mesma idade e nenhuma experiência na rota”.
Embora os resultados sejam consistentes com previsões teóricas, Michael Dickinson, professor do Departamento de Biologia da Universidade de Washington, em Seattle, enxerga muitas questões desafiadoras no estudo. Por exemplo, qual a quantidade de energia que essas aves realmente conseguem economizar com essa formação.
A melhor evidência existente sobre as vantagens dessa arquitetura surgiu há 10 anos, quando pesquisadores descobriram que os pelicanos apresentam uma menor frequência cardíaca ao voarem em v. “Medições precisas de taxa metabólica serão cruciais para uma compreensão mais precisa dessa aerodinâmica. Isso também é uma coisa importante para compreendermos melhor a migração de aves. Afinal, isso é um instinto ou elas simplesmente acham mais fácil voar assim? É isso que precisamos descobrir”, questiona o biólogo.
Animais ameaçados
O Geronticus eremita pode ter até 80cm de altura, com peso máximo de 1,3 quilo. A envergadura da asa alcança até 1,35m de comprimento. Carnívoro e diurno, vive em bando e procura alimento principalmente em fissuras rochosas, debaixo de pedras ou na vegetação. As fêmeas da espécie põem de dois a quatro ovos e não costumam se reproduzir antes dos 6 anos. Essas aves costumam viver em zonas áridas, semiáridas e escarpas rochosas junto à costa ou a linhas de água. São animais ameaçados de extinção. Estima-se que a atual população mundial de íbis-eremita na natureza seja inferior a 500 aves.
Palavra de especialista
Regina Macedo,
professora do Departamento de Zoologia da Universidade de Brasília
Busca por eficiência
“As aves migratórias costumam ser as de grande porte e, geralmente, estão no Hemisfério Norte. No entanto, é possível ver algumas delas no Brasil e até em Brasília. Existemespécies altamente sociais e, no caso das migratórias, há um fenômeno comum: muitas vezes, elas não conhecem a rota e precisam se ajudar. Além disso, há o elemento da proteção. Teorias afirmavam que elas viajavam em formação de v para economizar energia, o que é necessário, porque boa parte das espécies atravessam o mar durante os percursos. Esse estudo inovou ao analisar isso com a tecnologia. Faz sentido: quando se nada atrás de outra pessoa, por exemplo, também se percebe que é mais fácil atravessar a água. Há menos resistência. Todos os organismos, da ameba ao ser humano, evoluíram para otimizar a vida. Acredito que esses animais sentem que é mais fácil voar assim. Como nós, respondem ao que é mais eficiente.”