Jornal Estado de Minas

Loja francesa faz leilão de fóssil brasileiro no Ebay

Loja francesa anuncia, por mais de R$ 600 mil, fóssil de réptil que viveu há 120 milhões de anos no Nordeste. Além de criminoso, esse tipo de negócio prejudica as pesquisas no país

Jorge Macedo - especial para o EM
Paloma Oliveto

Fotos postadas na internet para atrair compradores: segundo a paleontóloga Taissa Rodrigues, especialista em pterossauros, a peça é uma das mais completas já encontradas - Foto: (Reprodução/Internet)

Brasília – Uma importante peça da pré-história brasileira foi parar em um site de leilões internacional. O raro exemplar de um pterossauro que viveu há 120 milhões de anos onde hoje fica o Nordeste está anunciado no eBay a US$ 262 mil (aproximadamente R$ 638 mil). Já foram feitos quatro lances e, de acordo com a página, a cada hora uma pessoa vê a oferta, que está sendo vigiada por 43 usuários. Trata-se de um espécime praticamente inteiro do Anhanguera santanae, escavado em Santana de Cariri. A cidade cearense localiza-se na Chapada do Araripe, o sítio natural mais rico do mundo em pterossauros.

O anúncio informa que o fóssil do Cretáceo Inferior tem 1m do crânio ao rabo e 3m de envergadura. Especialista no estudo de pterossauros, a paleontóloga Taissa Rodrigues, pesquisadora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), conta que, aparentemente, se trata de um exemplar precioso. “Ele é impressionante. É um dos mais completos que já vi. Deve ser o quarto mais completo (escavado no Brasil), igual a esse é raríssimo encontrar”, afirmou, depois de ver as fotos postadas pelo site.

Quem anuncia o Anhanguera é a loja francesa Geofossiles, na cidade de Charleville-Mézières. No ebay, a empresa afirma ser especialista na venda de “fósseis mamíferos do mundo” (mas o pterossauro, primo do dinossauro, é um réptil). O negócio foi criado em 2009 e, de acordo com a propaganda, tem como objetivo possibilitar que o comprador “desfrute da melhor qualidade fóssil com o menor preço”. O Estado de Minas entrou em contato com a Geofossiles pelo e-mail informado, mas não obteve resposta.

Crime

A venda de fósseis é permitida por alguns países, como Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha. Mas o comércio fica restrito aos ossos escavados nesses locais ou adquiridos de nações que, legalmente, permitem sua exportação. Não é o caso brasileiro. Desde 1942, quando foi publicado o primeiro decreto-lei sobre bens culturais paleontológicos do país, proíbe-se a exploração, a venda e a saída do país de depósitos fósseis. Esses objetos, inclusive, não podem ser comprados nem por brasileiros, pois são patrimônio nacional. A extração, a comercialização, o transporte e a exportação dos fósseis sem autorização configura crime com pena de multa e reclusão de um a oito anos.

Contudo, paleontólogos denunciam que traficantes burlam a fiscalização, transformando a herança histórica e cultural do país em pura mercadoria. O pesquisador Juan Carlos Cisneros, professor da Universidade Federal do Piauí (UFPI), diz que é comum ver fósseis brasileiros à venda na internet. “É um problema conhecido. Há muito tempo peças da Chapada do Araripe são anunciadas. Geralmente, são de peixes, insetos ou plantas. Mas, de vez em quando, aparecem os de maior valor científico”, lamenta.

A fiscalização e proteção dos depósitos fossilíferos é atribuição do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). De acordo com uma portaria de 1995, a autarquia do Ministério de Minas e Energia (MME) é responsável por “preservar, proteger, pesquisar e difundir o acervo técnico-científico que constitui a memória geológica do país, em especial os monumentos, os sítios geológicos, os depósitos fossilíferos, os museus de minerais, rochas, fósseis e materiais relacionados”. É de sua responsabilidade também “exercer o controle e a fiscalização dos depósitos fossilíferos bem como da exportação de materiais geológicos, minerais e paleontológicos conforme dispõe a legislação pertinente”, bem como realizar estudos com o objetivo de proteger e preservar os “jazimentos fossilíferos e de outros monumentos geológicos”.

Procurado pelo EM, o DNPM informou, por meio da assessoria de imprensa, que o órgão recebeu a denúncia envolvendo o Anhenguera, feita por Juan Cisneros. “Apuramos e, por envolver possível descaminho, o assunto foi encaminhado à Polícia Federal/Interpol. Quando há denúncia de fóssil fora do país, e o DNPM toma conhecimento, é de praxe o encaminhamento à Polícia Federal”, informou o órgão, por e-mail. O DNPM informou também que nenhum técnico estava disponível para falar com o jornal até o fechamento desta edição.

Repatriação

A Polícia Federal  (PF) informou que, quando há comércio de fósseis brasileiros no exterior, primeiramente a Divisão de Repressão a Crimes contra o Meio Ambiente e Patrimônio Histórico verifica com o DNPM e por meio de perícias feitas nas fotografias disponíveis se o objeto é, de fato, brasileiro. Em seguida, se no país onde foi realizado o anúncio houver adidância da PF – caso da França –, o adido ou o representante da Interpol é contatado. Esses fazem contato com a polícia local e demais autoridades para obter mais dados sobre a origem do material.

“Uma vez comprovado que se trata de bem ilícito, é instaurado inquérito policial pela PF e solicitada, por meio dos instrumentos legais cabíveis, a repatriação dos bens”, explicou, em nota, a assessoria do órgão. Atualmente, 64 peças contendo fósseis dos gêneros de peixes pré-históricos Leptolepis, Aspirdorhynchus e Rhacolepis estão sendo repatriadas. Elas já se encontram em posse da Embaixada do Brasil em Madri.

Para a paleontóloga Taissa Rodrigues, seria importante reforçar a fiscalização antes que os fósseis saiam do país. Por experiência, ela acredita que, uma vez ultrapassadas as fronteiras, é muito mais difícil tê-los de volta. O doutorado da cientista foi sobre os pterossauros brasileiros, mas, por falta de material em território nacional, ela precisou de uma bolsa para estudá-los no exterior. Taissa conta que há muitos fósseis desse réptil alado em depósitos de museus de países como Alemanha, Estados Unidos, Itália e Holanda. “A maioria dos pesquisadores dessas instituições fica constrangida, mas os museus não vão devolver. Eles compraram os fósseis e não vão mandá-los de volta. É uma perda muito grande para a sociedade brasileira”, acredita. O destino de muitos animais e plantas já extintos também pode ser a coleção particular de curiosos milionários, lembra.

A especialista conta que, na região da Chapada do Araripe, a população sabe identificar um fóssil, tanto porque já está acostumada a ver paleontólogos trabalhando e devido a campanhas de educação e preservação. Por isso, ela acredita que quem extraiu a rocha onde o pterossauro estava incrustado sabia o que estava fazendo. O fóssil não saiu do país com esqueleto montado, como se vê nas fotos, mas em pedaços que depois foram encaixados ou ainda dentro da rocha de calcário. Para Taissa, é curioso imaginar como uma imensa pedra embarcou para o exterior sem causar desconfiança. Juan Carlos Cisneros acha que os traficantes podem ter disfarçado o fóssil, para que parecesse um mineral comum. “O que esses vendedores estão fazendo é um grande desserviço para a ciência”, lamenta.

 

O que diz a lei

Decreto-Lei 4.146, de 1942
Diz que depósitos de fósseis são propriedade da Nação e, para extraí-los, é preciso autorização do Departamento Nacional da Produção Mineral (DNPM)

Decreto-Lei 72.312, de 1973
Determina, no artigo 1º, que a expressão “bens culturais” inclui “coleções e exemplares raros de zoologia, botânica, mineralogia e anatomia, e objetos de interesse paleontológico”

Lei 7.347, de 1985

Disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, histórico e turístico. A ação civil por danos a jazigos que contenham fósseis pode ser realizada pelo Ministério Público, pela União, por estados, municípios, autarquias, empresas públicas, fundações, sociedade de economia mista, associação civil ou associações de proteção

Constituição Federal
Os incisos IX e X do artigo 20 determina que “recursos minerais, inclusive os do subsolo” e “as cavidades naturais subterrâneas e os sítios arqueológicos e pré-históricos” são bens da União. O Artigo 23 atribui à União, aos estados,
ao DF e aos municípios a competência de proteção aos sítios arqueológicos e de impedir a evasão dos mesmos.
Já o inciso V do Artigo 216 inclui, no patrimônio cultural brasileiro, “os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”