Jornal Estado de Minas

Compulsão por games aumenta número de crianças e jovens com problemas

Em um consultório de psiquiatria de BH, por mês, quatro novos pacientes chegam por conta da fixação por jogos eletrônicos e uso excessivo da internet e das redes sociais

Sandra Kiefer - Especial para o EM

''O usuário acessa a internet e os games quando está entediado, enraivecido ou frustrado, como forma de anestesiar os sentimentos'', explica psiquiatra - Foto: AFP PHOTO / Yoshikazu TSUNO

 

“Na minha sala de aula tem grupinho que dá medo. Eles só conversam sobre jogos, não têm outro assunto. Não sou do tipo que acorda e vai jogar videogame, mas meu irmão é viciado. Quando os pais do meu colega viajam, ele se muda para o quarto de jogos e fica dois, três dias no escuro, jogando”. Frases soltas como essas foram extraídas de um grupo de seis adolescentes, entre 15 e 16 anos, de ambos os sexos, na porta de um colégio particular na região Sul de Belo Horizonte. Com cadernos e livros na mão, acabando de sair da escola, os jovens concordaram em conversar, de forma anônima, com a equipe de reportagem do Estado de Minas. “É preciso ter força de vontade para parar de jogar”, revela o adolescente, de 16 anos, que contou com um empurrão extra da mãe para se desligar do vício. Ela chegou ao extremo de esconder os manetes do jogo, depois que o filho foi reprovado no primeiro ano do ensino médio.



No início, A. não entendeu o ato de desespero da mãe, mas hoje já consegue comprender sua motivação. “Jogar algumas vezes por semana é diversão, mas do jeito que eu estava tinha virado uma obrigação. O game estava me deixando enlouquecido. Quando não conseguia ultrapassar uma fase, ficava nervoso”, admite o jovem, que estava de saída para a academia de ginástica. Com a decisão familiar de maneirar nos eletrônicos e de reduzir a ingestão de chocolate em 2014, o estudante emagreceu sete quilos. “No período da tarde, eu ficava jogando em vez de estudar. À noite, minha mãe mandava desligar o computador, mas eu jogava escondido. Dormi várias vezes jogando e já estava determinado a parar”, diz.

Por mês, quatro novos casos de compulsão por games batem na porta do consultório do psiquiatra José Belisário Filho, de BH. “É preciso entrar com medicação, em alguns casos, mas em outros é só uma questão de reorganizar o sono e melhorar a atividade física”, afirma o médico. Ele lembra que os jogos são importantes para estimular o raciocínio e a visão estratégica nos jovens, mas contêm componentes que favorecem a compulsão, ao recompensar o jogador com novas etapas a serem vencidas. “A febre dos videogames começou há 10 anos, mas tem piorado muito nos últimos meses com a chegada ao mercado da geração que já nasceu manipulando os controles.
A indústria de games é muito poderosa”, alerta.

Prejuízo para o cérebro

A maior preocupação de Belisário diz respeito ao costume da nova geração de jogar, acessar a internet e aplicativos como o WhatsApp, no celular, exatamente antes de ir para a cama. Segundo o médico, ao contrário dos jovens europeus e norte-americanos, que vão dormir por volta das 21h30, adolescentes e até crianças brasileiras retardam cada vez mais o momento de ir deitar em função das novelas, jogos de futebol e games. “Acontece que o cérebro obedece a um ciclo de sono de três horas depois que escurece, por volta das 21h30, e se desliga mais profundamente depois da meia-noite e meia. Quem vai para a cama depois das 23h está mais exposto, sofre de insônia e não dá tempo ao cérebro para reorganizar os pensamentos”, completa o psiquiatra, que tem vários pacientes na fase da adolescência que conversam pelo WhatsApp até as duas horas da madrugada.

Vícios ou benefícios?
Afinal, as mídias eletrônicas viciam? “O usuário acessa a internet e os games quando está entediado, enraivecido ou frustrado, como forma de anestesiar os sentimentos. Depois de oito minutos, o corpo reage ao estímulo e começa a liberar dopamina, que dá a sensação de prazer”, explica o psiquiatra Cristiano Nabuco de Abreu, coordenador do Grupo de Dependências Tecnológicas do Programa Integrado dos Transtornos do Impulso (PRO-Amiti), da Universidade de São Paulo (USP).

Para tirar a prova da dependência na internet e em outras mídias, Nabuco propôs a aprovação de experimento no comitê de ética do Departamento de Psiquiatria da USP. Ele planeja ampliar a ideia do projeto 100Facebook, que desafiou 100 pessoas a viver por 100 dias sem usar a rede virtual. Para ele, esta geração está navegando à deriva na internet.

“Não existe uma massa crítica. O problema não é a rede virtual, é o usuário da rede”, compara.

Para outra corrente de pesquisadores, os jovens conectados são mais rápidos e desenvolvem raciocínio lógico mais complexo em relação à geração passada. “A criança e o adolescente que gostam de joguinhos estão potencializando suas habilidades cognitivas. Desde que não estejam negligenciando os estudos e as atividades físicas, não vejo necessidade de impor limites seguros”, afirma Filipe Freitas, doutorando na estética de jogos eletrônicos no curso de comunicação visual da UFMG.

Ele recomenda que, em vez de ter preconceito em relação aos games, os pais deveriam tentar acompanhar os filhos no computador. “Há jogos com propostas interessantes, que ensinam a projetar cidades e até a simular programas espaciais, que exigem noções de astronomia e física. São jogos interativos, que permitem criar comunidades de amigos. É melhor do que passar de quatro a cinco horas sentado passivamente em frente à televisão”, defende.

Fascínio pelo mundo virtual

Divertidas e lotadas de recursos gráficos, as novas babás eletrônicas estão atraindo cada vez mais a atenção das crianças e a adolescentes. Os pais sentem-se acuados para impor o limite de duas horas diárias em frente às telas (tevê, celular, IPad, computador e games), preconizado pela Organização Mundial de Saúde (OMS). “É claro que as crianças vão ser presas mais fáceis, mas se uma delas caiu nesta rede é porque está com vazamento de energia em algum ponto. Ela pode não estar canalizando a atenção para os esportes, os relacionamentos ou os estudos. É uma má canalização de energia”, afirma a psicóloga Patrícia Quaresma Ragone. Ela já atendeu pacientes superatentos nos joguinhos e desligados nas lições da escola.

Quando uma criança chega a estabelecer compulsão severa por games, pode haver outras questões associadas ao caso, acredita a terapeuta da linha cognitiva. “Se a criança tem uma tendência à ansiedade, os pais têm de estar dispostos a ser os melhores elementos compensatórios para o filho. Não adianta eles ficarem impacientes ou indispostos, porque a criança não vai abandonar o que está dando alívio a ela. É preciso buscar o filho de volta”, orienta.

“O mais importante é saber dosar. Tudo o que é demais, sobra”, ensina Luzia Machado Gontijo, psicóloga e psicanalista que trabalha com crianças e adolescentes. Segundo ela, o exagero dos games torna-se preocupante quando atrapalha os estudos, o sono e a vida social dos usuários. “Ele se fecha em um mundo paralelo e se esquece de participar da vida real. Se chegarem outros colegas para brincar, ele prefere continuar curvado atrás da tela. Para ele, é mais fácil interagir com o mundo virtual, onde não sofre críticas”, completa.

 

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