Parte do segundo maior oceano do mundo, com enorme biodiversidade, reservas naturais de carbono, gás, petróleo e 8 mil quilômetros de costa, o Atlântico Sul – espelho d’água que banha toda a costa brasileira – aos poucos tem a sua evolução elucidada por meio do Instituto Oceanográfico (IO) da USP. Depois da aquisição do navio norte-americano Alpha Crucis, o que retomou e ampliou a capacidade da compreensão de processos climáticos, oceanográficos e de fluxo de carbono, pesquisa divulgada pela universidade paulista se debruçou no período entre os últimos 20 mil a 25 milhões de anos para entender como as mudanças de temperatura podem afetar o mar e, consequentemente, a vida na Terra.
A iniciativa, do Laboratório de Paleoceanografia do Atlântico Sul (LaPas), se vale de microfósseis marinhos coletados do mar, especialmente nanofósseis calcários de algas microscópicas e foraminíferos – organismos protozoários (unicelulares) que podem ser bentônicos, do fundo dos mares; ou planctônicos, extraídos da coluna de água –, capazes de expelir amostras de carbono.
A retirada das amostras com equipamentos de cano variável revela o registro das condições do ambiente marinho de milhares a milhões de anos. Os testemunhos – como são chamados no meio científico – permitem analisar os fósseis da fauna marinha, que, ao morrer, se precipitam e sedimentam, sendo sobrepostos com o passar do tempo a outros fósseis de organismos mais recentes. Uma curiosidade é que, apesar do tamanho diminuto, as algas calcárias podem ser visualizadas do espaço, quando desenvolvem grandes florações.
A partir dos microfósseis, se obtém a classificação, quantificação, além de parâmetros químicos e geoquímicos – como isótopos de oxigênio e de carbono, e o teor de carbono – que foram um indicativo das características químicas da água no período. Mesmo com todas as alterações no ambiente, os elementos mantêm a mesma proporção, como reforça a coordenadora do LaPas e uma das responsáveis pela pesquisa, Karen Badaraco Costa. “O testemunho é um retrato de como era a água naquele momento. E, assim, se consegue tirar disso a paleotemperatura da água, a paleossalinidade da água, os compostos orgânicos e a quantidade de nutrientes”, explicou.
Regiões como a Antártida e a Groenlândia, segundo Karen, servem de referência e, por isso, são bem conhecidas pelos testemunhos, por carregarem importantes registros climáticos globais. Como o Atlântico Sul está localizado entre os dois hemisférios do planeta, registros de sedimentos desta região acrescentam maior número de dados, indicando qual dos polos influencia de forma mais determinante o clima.
Vulcão
Para sustentar a tese, Karen e Felipe Antônio de Lima Toledo, outro coordenador do LaPas envolvido no estudo, apontam a interferência dos vulcões no desenvolvimento da vida terrena.
Milhares de anos depois, o vulcão Tambora – que explodiu em 1815, na ilha de Sumbawa, também na Indonésia – representou impacto semelhante, porém de menores proporções, na Europa. O continente, sustenta Toledo, ficou encoberto de cinzas na atmosfera, o que impediu a entrada de raios solares e resultou num inverno de dois anos na Terra. “Da paleoceanografia, chegamos ao vulcanismo, e, do vulcanismo, à história. Os livros sobre Drácula e Frankenstein foram escritos sob influência desse período frio. A Europa ficou sob cinzas, sem sol, as pessoas começaram a morrer de fome, a praticar canibalismo. Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, foi fundada por suíços, autorizados a vir para cá pelo Infante Dom João”, disse Toledo.
A equiparação dos microfósseis aos efeitos do Toba pôde ser obtida na pesquisa por meio dos isótopos 16 e 18 do oxigênio presente nos organismos. Em dada proporção na água, os isótopos são incorporados pelos organismos na mesma razão. A incidência deles varia segundo a temperatura, registrada nas amostras de carbono retiradas pelos pesquisadores.
As análises do LaPas apontaram grande diversidade entre os microfósseis planctônicos e bentônicos, com maior alteração nos planctônicos. A grande diversidade de espécies de clima frio chamou a atenção dos pesquisadores, que, ao comparar os resultados com o modelo de idade, constataram a coincidência de datas. A pesquisa, contudo, ainda deixa incógnitas, principalmente sobre como um vulcão distante pôde impactar de forma tão próxima o Atlântico Sul. As associações brasileiras de Biologia Marinha (ABBM) e de Oceanografia não foram encontradas para comentar o teor dos resultados.
Volume de água
Estudo observacional realizado por um grupo internacional de pesquisadores e financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) apontou que o Atlântico Sul está recebendo maior volume de água do Oceano Índico – com águas mais quentes e com maior concentração de sal.
A pesquisa foi a primeira baseada em dados coletados no Alpha Crucis – navio oceanográfico fabricado em 1973 para a Universidade do Havaí e adquirido pela Fapesp em 2012, para o Instituto Oceanográfico (IO), quatro anos após um incêndio aposentar o navio de pesquisas Professor W. Besnard. Para o professor do IO e coordenador do projeto internacional de análise da circulação de calor no Atlântico Sul South Atlantic Meridional Overtuning Circulation (Samoc), Edmo Campos, mudanças mínimas na temperatura ou na concentração de água alteram o processo de troca de calor da superfície do oceano com a atmosfera “e a resposta no clima pode ser até mesmo catastrófica”.
O esforço internacional de pesquisa reúne pesquisadores e instituições da África do Sul, Alemanha, Argentina, Brasil, Estados Unidos, França e Rússia. O Atlântico Sul realiza transporte de calor para o Atlântico Norte a uma taxa da ordem de 1,3 petawatt, o que representa uma quantidade de energia comparável à produzida por mais de 200 mil usinas de Itaipu.
O que é o LaPas
O Laboratório de Paleoceanografia do Atlântico Sul tem sede no Instituto Oceanográfico (IO) da Universidade de São Paulo (USP) e é coordenado pelos professores Felipe e Karen. Fundado em 2005, seu objetivo é contribuir com o desenvolvimento da paleoceanografia no Brasil, realizando pesquisas que visam a melhor compreensão dos efeitos das alterações climático-oceanográficas globais ao longo do tempo geológico a partir do estudo de microfósseis marinhos em testemunhos de mar profundo, provenientes da margem continental brasileira.
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