Em uma de suas crônicas sobre o Brasil, o colonizador Pero de Magalhães Gândavo dizia que a língua dos índios carecia de três letras: “f”, “l” e “r”. “Coisa digna de espanto”, acrescentava, “porque assim não há fé, nem lei, nem rei, e, dessa maneira, vivem desordenadamente”. Na visão dos europeus de então, os “homens pardos” eram apenas bárbaros sem regras, distantes de qualquer traço de civilização. A visão eurocêntrica, no entanto, foi demolida nos últimos séculos. Um olhar mais atento e menos preconceituoso, adotado por cientistas, revelou a complexidade e a riqueza cultural dos primeiros americanos, que até hoje podem surpreender. É o que mostra um estudo publicado na edição desta semana da revista Plos One, que detalha o mais antigo caso de decapitação ritualística das Américas, ocorrido há 9 mil anos e descoberto agora em uma caverna no sítio arqueológico de Lapa do Santo, município de Matozinhos, a 51 quilômetros de Belo Horizonte.
Decapitação pode parecer, como diria Gândavo, coisa de bárbaros. Mas a cena encontrada em uma sepultura a 55cm de profundidade pelos pesquisadores aponta na direção oposta. Não se trata de um evento de violência e punição, mas que, ao contrário, revela a sensibilidade e a sofisticação ritualística de um povo que tinha apenas o corpo humano para expressar seus princípios cosmológicos a respeito da morte. “A ideia não é de sacrifício. A decapitação fazia parte de um ritual funerário no qual era importante proceder a redução do corpo do falecido, ou seja, a decapitação não foi a causa da morte. Ela foi realizada depois da morte do indivíduo”, esclarece ao Estado de Minas o antropólogo brasileiro André Strauss, principal autor do estudo e pesquisador do Departamento de Evolução Humana do Instituto Max Planck de Antropologia Evolucionária, na Alemanha.
Descoberto em 2007, o sepultamento descrito no trabalho é o de número 26, entre os já encontrados em Lapa do Santo. O esqueleto enterrado pertencia a um homem jovem do Povo de Luzia, nome dado ao grupo de caçadores-coletores que habitava a região (leia Palavra de especialista). O crânio decapitado estava coberto pelas duas mãos do morto, amputadas e posicionadas com cuidado: a direita sobre o lado esquerdo da face, com os dedos apontando para o queixo; e a esquerda, colocada da porção direita do rosto, mas na direção contrária. Análises feitas com um microscópio que gera modelos tridimensionais de marcas e cortes indicaram que os tecidos moles foram removidos com lascas de pedra.
A interpretação dos detalhes é fruto de um amplo trabalho de equipe, que inclui pesquisadores da Universidade de São Paulo e renomados peritos forenses, como antropóloga Sue Black, diretora do Centro de Anatomia e Identificação Humana da Universidade de Dundee, no Reino Unido. Curiosamente, a especialista conta que os padrões de decapitação da Lapa do Santo lembram o de um caso moderno, criminoso, no qual ela trabalhou. “O caso ainda não foi resolvido, e a vítima ainda não foi não identificada, o que restringe as informações que posso fornecer”, diz. “No entanto, os padrões de fratura visto sobre os ossos do pescoço da ossada são como os da vítima de assassinato que examinei: sua cabeça foi hiperestendida e girada, causando impacto e fratura torsional. Foi interessante ver isso nesse crânio brasileiro tão antigo, que estava quase na mesma posição.”
A configuração peculiar e cuidadosa na qual a ossada foi enterrada sugere que ela não pertencia a um inimigo, mas, provavelmente, a um indivíduo de status único, como alguém venerado. Não foram encontradas, por exemplo, marcas de violência nem características típicas de uma cabeça-trófeu, como buracos preenchidos com cordas que facilitariam a exposição do crânio. O enterro ocorreu pouco tempo após a morte. “O sepultamento 26 faz parte de um padrão mortuário em que a redução de cadáveres frescos e a remoção de partes do corpo eram um elemento central, mas o foco não era, necessariamente, a cabeça”, diz Strauss.
Reformulação Esse achado levou o pesquisador a repensar suas impressões sobre as práticas funerárias de Lapa do Santo. “Durante muito tempo, os arqueólogos acreditaram que o enterro dos mortos em Lapa do Santo era um processo simples e trivial. Foi justamente com a descoberta do sepultamento 26 e de outros semelhantes que começamos a perceber que essa visão estava equivocada”, explica Strauss. A ossada permite que, do ponto de vista cronológico, os pesquisadores reformulem as teorias sobre a época em que se iniciaram os rituais de decapitação na América do Sul. Até então, o caso mais antigo era do sítio Asia 1, no Peru, datado em cerca de 4 mil anos atrás.
O novo trabalho também oferece novos dados sobre a geografia desse tipo de ritual, pois achava-se que a prática, em tempos pré-coloniais, era registrada apenas na região dos Andes, no lado oposto do continente. “O desafio agora é entender como o caso que reportamos se relaciona com os do outro lado do continente. Se é que há alguma relação”, diz Strauss. Enquanto a questão permanece aberta, os estudos em Lapa do Santo seguem a todo vapor, com esforços concentrados em extrair o DNA do Povo de Luzia e estudar os microfósseis do sítio. “E claro, seguimos escavando o sítio. A cada ano, descemos cerca 40cm. É um processo de longa duração.”
Decapitação pode parecer, como diria Gândavo, coisa de bárbaros. Mas a cena encontrada em uma sepultura a 55cm de profundidade pelos pesquisadores aponta na direção oposta. Não se trata de um evento de violência e punição, mas que, ao contrário, revela a sensibilidade e a sofisticação ritualística de um povo que tinha apenas o corpo humano para expressar seus princípios cosmológicos a respeito da morte. “A ideia não é de sacrifício. A decapitação fazia parte de um ritual funerário no qual era importante proceder a redução do corpo do falecido, ou seja, a decapitação não foi a causa da morte. Ela foi realizada depois da morte do indivíduo”, esclarece ao Estado de Minas o antropólogo brasileiro André Strauss, principal autor do estudo e pesquisador do Departamento de Evolução Humana do Instituto Max Planck de Antropologia Evolucionária, na Alemanha.
Descoberto em 2007, o sepultamento descrito no trabalho é o de número 26, entre os já encontrados em Lapa do Santo. O esqueleto enterrado pertencia a um homem jovem do Povo de Luzia, nome dado ao grupo de caçadores-coletores que habitava a região (leia Palavra de especialista). O crânio decapitado estava coberto pelas duas mãos do morto, amputadas e posicionadas com cuidado: a direita sobre o lado esquerdo da face, com os dedos apontando para o queixo; e a esquerda, colocada da porção direita do rosto, mas na direção contrária. Análises feitas com um microscópio que gera modelos tridimensionais de marcas e cortes indicaram que os tecidos moles foram removidos com lascas de pedra.
A interpretação dos detalhes é fruto de um amplo trabalho de equipe, que inclui pesquisadores da Universidade de São Paulo e renomados peritos forenses, como antropóloga Sue Black, diretora do Centro de Anatomia e Identificação Humana da Universidade de Dundee, no Reino Unido. Curiosamente, a especialista conta que os padrões de decapitação da Lapa do Santo lembram o de um caso moderno, criminoso, no qual ela trabalhou. “O caso ainda não foi resolvido, e a vítima ainda não foi não identificada, o que restringe as informações que posso fornecer”, diz. “No entanto, os padrões de fratura visto sobre os ossos do pescoço da ossada são como os da vítima de assassinato que examinei: sua cabeça foi hiperestendida e girada, causando impacto e fratura torsional. Foi interessante ver isso nesse crânio brasileiro tão antigo, que estava quase na mesma posição.”
A configuração peculiar e cuidadosa na qual a ossada foi enterrada sugere que ela não pertencia a um inimigo, mas, provavelmente, a um indivíduo de status único, como alguém venerado. Não foram encontradas, por exemplo, marcas de violência nem características típicas de uma cabeça-trófeu, como buracos preenchidos com cordas que facilitariam a exposição do crânio. O enterro ocorreu pouco tempo após a morte. “O sepultamento 26 faz parte de um padrão mortuário em que a redução de cadáveres frescos e a remoção de partes do corpo eram um elemento central, mas o foco não era, necessariamente, a cabeça”, diz Strauss.
Reformulação Esse achado levou o pesquisador a repensar suas impressões sobre as práticas funerárias de Lapa do Santo. “Durante muito tempo, os arqueólogos acreditaram que o enterro dos mortos em Lapa do Santo era um processo simples e trivial. Foi justamente com a descoberta do sepultamento 26 e de outros semelhantes que começamos a perceber que essa visão estava equivocada”, explica Strauss. A ossada permite que, do ponto de vista cronológico, os pesquisadores reformulem as teorias sobre a época em que se iniciaram os rituais de decapitação na América do Sul. Até então, o caso mais antigo era do sítio Asia 1, no Peru, datado em cerca de 4 mil anos atrás.
O novo trabalho também oferece novos dados sobre a geografia desse tipo de ritual, pois achava-se que a prática, em tempos pré-coloniais, era registrada apenas na região dos Andes, no lado oposto do continente. “O desafio agora é entender como o caso que reportamos se relaciona com os do outro lado do continente. Se é que há alguma relação”, diz Strauss. Enquanto a questão permanece aberta, os estudos em Lapa do Santo seguem a todo vapor, com esforços concentrados em extrair o DNA do Povo de Luzia e estudar os microfósseis do sítio. “E claro, seguimos escavando o sítio. A cada ano, descemos cerca 40cm. É um processo de longa duração.”